Por Murillo Trevisan
Já não é de hoje que se alerta sobre o esgotamento criativo nas abundantes adaptações de quadrinhos de super-heróis para os cinemas. Independentemente de boas ou ruins, acabam seguindo a mesma receita – de sucesso, diga-se de passagem – do MCU, produzindo filmes iguais e em massa, mesmo quando se trata de outros estúdios, como é o caso dos X-Men na FOX ou dos heróis da DC na Warner Bros.
Consciente dos fatos de que seus maiores sucessos estavam nos longas solos (“Aquaman” e “Mulher-Maravilha”), mas quando os juntavam em equipe (“Batman vs. Superman” e “Liga da Justiça”) se tinha um imenso fracasso comercial, o estúdio tomou a acertada decisão de se renovar frente a esse mercado: produzir histórias independentes, sem a necessidade de conexão com o DCU, dando uma maior liberdade à cineastas com estilos próprios e marcantes.
O próprio diretor Todd Phillips (“Se Beber, Não Case!”) afirmou em entrevista ao site Comicbook que com “Coringa” ele queria criar algo novo e totalmente independente e, que o único jeito de bater a Marvel seria fazendo um filme que eles jamais conseguiriam fazer. Uma obra adulta, madura e violenta, que nas atuais regras da Disney, seria impossível de ser feito.
A trama acompanha Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com distúrbios mentais e uma condição neurológica que o faz rir descontroladamente, especialmente em momentos de tensão e estresse. Ele tem reuniões ocasionais com uma funcionária do programa de assistência social (Sharon Washington) que faz o seu acompanhamento psicológico. Apesar das limitações que o serviço público impõe sobre ela, Arthur a vê com o total desinteresse e alienação no seu caso, enquanto ele afunda cada vez mais em uma depressão descontrolada.
Numa Gotham City completamente afundada, vivendo uma turbulência social, econômica e política – muito bem retratada metaforicamente pela “crise do lixo”, semelhante a que ocorreu em Nova York em 1968 – Arthur luta todos os dias para manter-se de pé e ser ao menos notado pela sociedade que, quando não o exclui, o barbariza devido à sua deficiência. Ao longo de sua jornada, ele empatiza com poucos a sua volta, como é o caso de seu colega na agência de palhaços (Leigh Gill), sua mãe Penny (Frances Conroy) e a vizinha (Zazie Beetz).
Numa noite voltando para casa após perder o emprego, ele é vandalizado dentro do metrô por três jovens embriagados, mas decide revidar assassinando os rapazes a tiros. A morte dos garotos de classe alta, que trabalhavam para o arrogante magnata Thomas Wayne (Brett Cullen), divide a sociedade: enquanto uns ficam indignados e procuram “o palhaço assassino do metrô”, outros o glorificam e promovem manifestações em prol ao extermínio dos ricos da cidade.
Assim como na trama, as opiniões quanto ao filme também estão polarizadas. Algumas críticas vem o classificando como um produto “tóxico”, um potencial catalisador de indivíduos perturbados, que se veriam legitimados em um longa que parece humanizar o maior vilão do Batman, dos quadrinhos e dos cinemas. Apesar de toda polêmica, o roteiro de Scott Silver (“O Vencedor”) e do próprio Todd Phillips passa longe de louvar atos terroristas e propõe justamente o contrário, um convite à reflexão do real significado de sociedade, exemplificando alguns males da exclusão de parte dela.
Apesar de carregar uma história completamente original, Phillips não esconde em momento algum as suas inspirações e maiores influências cinematográficas, passando por “Um Estranho no Ninho”, de Milos Forman, “Um Dia de Cão” e “Rede de intrigas”, de Sidney Llumet, até os maiores homenageados – e mais evidentes – “Taxi Driver” e “O Rei da Comédia”, de Martin Scorsese, que aqui participa da produção.
O próprio Robert De Niro (“Touro Indomável”), parceiro de longa data de Scorsese, soma-se ao elenco fazendo papel do apresentador de Talk Show Murray Franklin, que faz referência ao papel vivido por Jerry Lewis em “O Rei da Comédia”, justamente o contraponto do personagem de De Niro no filme de 1982.
Mesmo com total qualidade no coletivo, não há como negar que a estrela do filme é Joaquin Phoenix (“Ela”), que da vida, de forma impecável, ao personagem título do filme. Sua singular risada torna perceptível as sensações de tristeza, tensão ou raros momentos de alegria. O timing com que as executa demonstra o quão distante do padrão de sociedade ele se encontra
Além disso, o processo de transformação física de Phoenix é impressionante: seu corpo magro e esguio, com volumes e protuberâncias disformes sob a pele, lhe dão um estranho aspecto grotesco. Seus movimentos carregam em si o peso do protagonista, alternando a violência animalesca e os momentos de leveza em seus gestos. A confiança em Phoenix é tanta, que grande parte da fotografia se faz por close-ups bem fechados, transmitindo, mesmo sem falas, toda sua turbulência interna, o tornando o centro inescapável da nossa atenção.
Completamente adulto, maduro e violento, “Coringa” torna-se mais uma obra prima das adaptações de quadrinhos – justamente ao lado de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008), que contou com o brilho de Heath Ledger dando vida ao mesmo personagem. A atuação primordial de Joaquin Phoenix o carimba como um dos melhores de sua geração e a excelência de Todd Phillips comprova que o diretor de “Se Beber, Não Case!” (2009) pode ser muito mais que um “contador de piadas”.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 121 min
Gênero: Crime, Drama, Suspense
Diretor: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Jolie Chan, Frances Conroy