Por Bruno Tavares
Ruy Guerra é um dos ícones do período do Cinema Novo brasileiro. Ao lado de outras mentes poderosas como Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Helena Solberg, ele e diversos diretores quebraram os paradigmas das chanchadas e criaram uma forma singular de se fazer cinema nacional. Com um histórico desses, seu novo filme naturalmente chamaria a atenção. Entretanto, “Quase Memória “possui ainda outros atributos que captam o olhar do público. A história é adaptada a partir do livro homônimo de Carlos Heitor Cony, célebre jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.
Em sua narrativa, Cony mistura jornalismo e ficção para contar de maneira quase biográfica as lembranças que possuía do pai. Em tela, vemos Guerra honrar a obra e transcrever cuidadosamente para a linguagem cinematográfica fatos tão singelos. Todo o filme se passa no período de uma noite na qual o velho Carlos (Tony Ramos) encontra um antigo pacote de seu pai endereçado a ele. Isso desperta uma experiência epifítica onde seu eu do presente encontra com o eu do passado (Charles Fricks). Enquanto o personagem de Tony é um senhor à beira da esclerose, Charles dá vida a uma figura perdida por não saber como foi parar em uma época diferente da sua. Eventualmente, a dupla se auxilia a rememorar os acontecimentos idos.
Repleto de flashbacks, o filme se mostra muitas vezes como uma conversa entre conhecidos sobre o passado. À medida que os dois Carlos revisitam eventos marcantes, eles vão recobrando memórias há muito esquecidas. Por vezes, o duo discorda sobre determinada lembrança e esta acaba sofrendo alterações graças a detalhes acrescentados ora por um, ora por outro. Vale ainda ressaltar que o elo conector que permite o encontro do passado jovem e do presente desmemoriado é mesmo a figura de Ernesto (João Miguel), o pai de Carlos. Ele é o ponto principal das reminiscências e um dos pilares de formação da personalidade do filho. Com um espírito sonhador e acaguetes espasmódicos, o patriarca marcou a forma como Carlos vê o mundo e tal fato serve de combustível para esta incursão no palácio das memórias. Outro elemento que serve de liga entre as idas e vindas da trama são as notícias de jornal e rádio, um resquício da profissão de Cony que permaneceu em seu texto.
Tudo isso é orquestrado pela técnica impecável de Ruy Guerra. Sua câmera mostra-se irrequieta e trêmula, demonstrando a instabilidade emocional dos personagens. Já os enquadramentos e closes conduzem o olhar do espectador, por vezes de maneira abrupta, a elementos importantes para a narrativa. Durante as lembranças, os ângulos adotados para captação são os mais desalinhados possíveis, chegando mesmo à diagonal, como na cena de Ernesto na estação de trem. Tal recurso reforça o desequilíbrio da mente de Carlos e seus lapsos na cronologia dos eventos vividos. Outra sequência que merece destaque é a da mesa de jantar, gravada de um ângulo zenital (olho de Deus). A forma com que os personagens são vistos de cima e o jogo de iluminação é pura poesia visual.
Por tantas características singulares, o longa se assemelha em alguns momentos a uma peça teatral. Seja pelo movimento dos personagens em cena ou por suas atuações carregadas, a impressão que o espectador tem é de que a tela se tornou um verdadeiro palco. Dois fatores colaboram para isso: um deles é a iluminação, que nas sequências dos dois Carlos se mostra um eficaz jogo de claro e escuro. O outro é a coloração das cenas, que pinta o presente com um forte tom amarelado, enquanto as memórias ganham nuances bem mais saturadas de verde, azul, vermelho e rosa. Completando a ambientação, repare na trilha sonora. Esta é formada principalmente por acordes de ópera, gênero musical favorito de Ernesto.
Assim como as obras do Cinema Novo, “Quase Memória” é uma produção fora do eixo comercial e completamente diferente do estilo tradicional de narrativa. Por conter uma assinatura autoral, o título se aproxima muito da estética dos chamados “filmes de arte” e pode ser uma opção diferente do que o grande público está acostumado a ver. Ruy Guerra confecciona um longa claramente marcado por seu toque, com um final aberto para interpretações. Ao sairmos do cinema, nos questionamos se tudo o que vimos realmente aconteceu ou foi apenas a alucinação de uma mente cansada. A única certeza que temos, é a frase emblemática proferida por Carlos: “A ficção é apenas uma realidade que ainda não aconteceu”.
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Ficha Técnica:
Ano: 2016
Duração: 140 min
Gênero: Drama
Direção: Ruy Guerra
Elenco: Tony Ramos, Charles Fricks, João Miguel, Mariana Ximenes
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