Por Luciana Ramos

O mundo vitoriano que coloria os livros sobre Sherlock Holmes com suas carruagens, cachimbos, formalidades e assassinatos era sombrio e excitante…embora imensamente conversador e restritivo para mulheres.

No mesmo extenso período, denominado a partir da regência da Rainha Vitória (e que marca a expansão do Império Britânico), estão as heroínas de Jane Austen que, embora procurem moldar seus destinos ao tentar unir amor e dinheiro, ainda são obrigadas a cumprir uma série de normas e costumes sociais que, invariavelmente, atuam contra elas.

Por isso, a série de livros de Nancy Springler que reimagina o universo do detetive inglês a partir da perspectiva de sua irmã mais nova Enola (acrônimo de “Alone”, sozinha) é tão interessante e pertinente. Igualmente envolvidas por mistérios, as novas histórias caracterizam a capacidade de farejar pistas como um traço genético e compartilhado pela garota, ponto principal da sua adaptação cinematográfica.

No longa produzido pela Netflix, Enola (Millie Bobby Brown) e Eudora (Helena Bonham-Carter) são apresentadas em um ambiente livre, desgarrado de ornamentos restritivos como espartilhos e recheado de experimentações, sejam elas científicas ou puras elaborações para combater o tédio e explorar os arredores de Ferndell. Um dia, no entanto, a adolescente acorda e percebe que sua mãe partiu e, embora suas emoções a tentem a acreditar no retorno, seu raciocínio lógico atesta que isto é improvável.

Por estar sozinha, ela é obrigada a receber seus irmãos, Mycroft (Sam Claflin) e Sherlock Holmes (Henry Cavill), já dotado de fama. A curiosidade de um defronta-se com a rigidez do outro, que deseja assumir a posse da propriedade e, por extensão, da irmã, já que se intitula como tutor e arranja seu envio para uma escola designada para moldar jovens mulheres em “damas”.

Nenhum destino poderia ser pior na visão de Enola, o que a faz fugir de trem (em vestes masculinas, primeiro desafio às convenções) e conhecer um jovem de nome pomposo na mesma situação: o Visconde de Tewkesbury, Marquês de Basilwether (Louis Partridge). O rapaz também visa escapar de um destino que lhe foi imposto, demonstrando que sociedades rígidas também são sufocantes para homens, visto que delimitam e restringem individualidades em prol de uma padronização de normas e costumes. Este contraste entre liberdade e o engessamento social é bem definido visualmente tanto na direção de arte quanto na fotografia e nos figurinos. Se o campo é claro, embebido pela luz do sol e permeado por tons pasteis, Londres é severa e colorida com tons sóbrios, lamacenta e sisuda.

A cada ruela ou ameaça da grande cidade, Enola opta por continuar seguindo pois, na sua visão, a jornada libertária a conduzirá aos braços de sua mãe. A sagacidade de cada descoberta é prontamente compartilhada com o espectador, sendo o uso da quebra da quarta parede um instrumento de intimidade e modernização. As inserções gráficas que resumem seu pensamento possuem o mesmo papel e tornam a trama bastante dinâmica. Mesclado com algumas cenas de ação está o jogo de gato e rato que move diversos personagens, inclusive Sherlock, que se vê intrigado pela astucia da irmã e decide seguir seus passos.

A todo momento, a protagonista se vê diante de alguma situação em que precisa se disfarçar para se proteger, o que inclui mudanças de nomes e figurinos. Tais dribles denunciam as já citadas restrições às mulheres e, portanto, o seu embate constante escancara o caráter feminista da personagem. Em mais de um momento, por sinal, é ela quem salva o visconde; em outras, ele a ajuda com o pensamento fora do óbvio em um jogo de equilíbrio muito bem-vindo.

A narrativa certamente se beneficia do charme de Millie Bobby Brown, que consegue atrair e segurar o interesse do espectador com suas interações com a câmera, além de ser convincente nas cenas de ação e graciosa nos maneirismos furtivos de sua protagonista.

Divertido, envolvente e leve, “Enola Holmes” é um longa tecnicamente impecável que revisita um universo popularmente conhecido para oferecer ao público um novo prisma. Obviamente, o filme abre espaço para continuações, mas, neste caso, não há nada de mal nisso, visto a qualidade da produção da Netflix.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 123 min

Gênero: aventura, crime, drama

Direção: Harry Bradbeer

Elenco: Millie Bobby Brown, Helena Bonham-Carter, Henry Cavill, Sam Claflin, Louis Partridge

Avaliação do Filme

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