Por Luciana Ramos

A originalidade do trabalho de Charlie Kauffman já havia sido atestada em belíssimos trabalhos anteriores, como “Brilho Eterno sem Lembranças” e “Adaptação”, obras que conseguem de maneira eloquente explorar a fundo as inquietações de seus personagens – seus sentimentos, anseios e percepções de mundo – compondo, no caminho, brilhantes alegorias imagéticas que atendem às expectativas de fruição de uma obra audiovisual.

Em “Anomalisa”, ele deu passos adiantes, assumindo a figura de diretor e, portanto o controle narrativo, o que o conduziu a um lugar de maior experimentação. No melancólico stop-motion, sua tese mistura-se à forma apresentada (a exemplo das dissonâncias verbais da dublagem) e embalam uma experiência estranha, porém interessante por sua complexidade. O mesmo acontece com seu novo filme, “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, disponível na Netflix.

A escolha do streaming para o lançamento do projeto, uma adaptação do livro homônimo de Ian Reid (ou melhor, a sua interpretação deste), decorreu diretamente dos problemas de distribuição que teve com o filme anterior, que conquistou os festivais e críticos, mas foi lançado em pouquíssimas salas por conta da sua falta de apelo comercial, segundo palavras dos executivos da Paramount Pictures.

O desalento levou Kauffman a interpretar o streaming como um lugar de segurança, “onde o filme pode ser visto sem restrições para sempre”, segundo o próprio. Esta consideração, no entanto, não o impede de criticar abertamente este formato de consumo, visto como limitador e restritivo por sua protagonista, Lucy (que assume outros nomes na trama, mas, para facilitar, adotaremos o que a apresenta). Não apenas ela acha que assistir a filmes demais sem o tempo necessário para absorção leva a um estado de superficialidade de pensamentos e discussões, como reafirma a atualidade da teoria de Guy Debord que, no livro “A Sociedade do Espetáculo” (escrito nos anos 70) descreve o caminhar da civilização para um estado de aparências e impessoalidade.

São carências afetivas como esta que afligem a personagem feminina, que também parece faltar o gene da socialidade. Intercalando cordialidade, frieza e verborragia (que, invariavelmente, fere alguém), ela percorre de carro o caminho gélido até a casa dos pais de Jake (Jesse Plemons), seu namorado. O temor e o peso do primeiro encontro com pessoas importantes para ele mesclam-se ao fato de que Lucy (Jessie Buckley) está pensando em acabar tudo com ele. Essa frase vagueia na sua mente, aparecendo recorrentemente para escancarar seu desconforto e solidão. Porém, suas considerações sobre a brevidade dos relacionamentos, a veracidade de seu teor e as possibilidades de futuros são constantemente interrompidas por falas dele, que atua como o interlocutor amigável, aquela pessoa que tem a necessidade de tornar a jornada agradável.

“Estou Pensando em Acabar com Tudo” se alonga neste percurso (um total de 22 minutos), mostrando de cara ao espectador que a sua essência se pauta nas discussões existenciais, até então pautadas exclusivamente no diálogo, mas que assumem caráter visual ao chegarem na longínqua casa. O ritmo lento e a ambientação sóbria reforçam o tom e indicam que esta não é uma obra para todos os gostos, interessando aos que procuram filme questionadores, metafísicos e ativos, no sentido que exigem a devoção atenta do espectador para juntar cada peça apresentada.

Na casa, por exemplo, logo se percebe que rostos, nomes (Lucy/Lucia/Louisa), profissões e acessórios são intercambiáveis, maneira visual e dialética de explorar as possibilidades – não do encontro, mas dos destinos de cada personagem. A acomodação de Lucy, sentada em frente à lareira com um colar de pérolas, símbolo de uma existência doméstica e um tanto antiquada, contrapõe-se à gritaria incômoda da briga entre o pai (David Twhelis) e a mãe (Toni Colette) ou mesmo a passagens brutais e secas sobre a velhice, tudo arrematado em um fluxo temporal que flutua e se mistura à percepção que ela tem de cada momento. Na maior parte do tempo, a estranheza das mudanças a conduzem a um estado de perturbação que exacerba seus questionamentos sobre a durabilidade do romance com um homem que não tem certeza se admira, quiçá ama.

Caminhando entre cenários diferentes, enreda-se em uma jornada existencialista que carece da solidez de uma estruturação narrativa e, por isso, assistir ao filme se torna uma jornada desafiadora. O limite deste desenho dramático é atingido quando Lucy e Jake fazem o caminho de volta – e o interrompem algumas vezes, para o desagrado dela. Porém, esta “pausa” a conduz a um entendimento superior do seu relacionamento, transitando entre raiva, conciliação (com uma versão deprimente e velha dele) e, posteriormente, até mesmo romântica – por meio da dança – e esta mudança súbita de interações e sentimentos ajudam a sedimentar o debate existencialista que ela vive.

Conforme dito anteriormente, “Estou Pensando em Acabar com Tudo” não é um filme fácil (e este aspecto é preciso ser enfatizado), assemelhando-se mais a uma experiência reflexiva do que um filme moldado em narrativa aristotélica. As pistas estão em todos os lugares, e temo dizer que é impossível sacar todas de apenas uma vez. Ele precisa ser digerido, revisto, pausado, refletido. É um exercício fílmico tão inesperado em uma era de pasteurização que deve ser louvado, especialmente considerando as excelentes atuações do quarteto principal, com destaque para Jessie Buckley ( de “Chernobyl”), que se lança a um carrossel de emoções com coragem, potencializando a instabilidade da mente de Lucy e, assim, a sua visão de mundo.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 134 min

Gênero: drama, suspense, existencial

Direção: Charlie Kauffman

Elenco: Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Colette, David Twhelis

Avaliação do Filme

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