Por Luciana Ramos
Em “Para Minha Amada Morta”, Aly Muritiba inseriu as fitas de VHS como instrumento de ruptura para o luto do seu personagem principal. Até então idealizando a figura da mulher falecida em um ritual que cancelava o mundo ao redor, ele confronta-se com verdades indesejadas sobre ela ao remexer em antigas fitas, o que o leva a desejar investigar mais sobre sua vida.
Ao longo da criação do longa, o diretor viu-se intrigado pela potência da tecnologia, não só pela sua capacidade de registro como pelo seu poder devastador – quando usado inapropriadamente. Abrangendo o conceito e trazendo-o aos dias atuais, onde a experiência humana é balizada pelos smartphones, concebeu “Ferrugem”, um drama com ares de terror.
O filme apresenta ao começo interações típicas de adolescentes: conversas, “zoações”, namoros. Após ser traída por Nando, Tati (Tiffany Dopke) tenta se reerguer demonstrando interesse em Renet (Giovanni de Lorenzi), que parece corresponder. Eles procuram um lugar afastado do resto da turma para ficarem, mas o clima de romance é subitamente interrompido quando ela descobre ter perdido seu celular. Todos ajudam na busca, mas ela não consegue encontrá-lo.
No dia seguinte de aula, ela é abordada de maneira estranha nos corredores do colégio, ouvindo comentários irônicos e explicitamente debochados. Descobre, então, que um vídeo bastante íntimo foi enviado para os grupos do colégio. Sem saber como agir, ela permanece cabisbaixa, posição da qual não se recuperará. Em meio às lágrimas, procura as duas pessoas que poderiam ter escancarado sua privacidade, seu ex-namorado e o romance atual, para ser desmerecida por ambos (que deveriam conhecê-la a fundo), reduzida a classificações chulas e machistas.
Esses dois momentos de confrontação explicitam o argumento do diretor, facilmente validado no cotidiano brasileiro, de que, diante de uma situação como essa, é a mulher quem mais sofre. A divulgação de um conteúdo pessoal faz com que todos ao seu redor sintam-se confortáveis em desrespeitá-la, transformando-a em uma espécie de Geni adolescente.
Sem forças para se impor continuamente diante de sucessivas agressões, Tati esconde-se nos banheiros do colégio. Estes, por sua vez, encontram-se cobertos por frases de efeito sexual que estereotipam o sexo feminino, reduzindo-o a polos extremos de atuação que não devem ser cruzados; aqueles que se revelarem humanos e, portanto, dotados de erros, serão implacavelmente punidos.
Neste estigma também se encaixa a mãe de Renet (Clarissa Kiste), e a sua introdução na trama ajuda a contextualizar algumas das ações do filho, também inserido no molde conservador e machista. As figuras dos pais, por sinal, são muito bem pontuadas no roteiro de Muritiba e Jessica Candal. Ao seu ver, muito do potencial destrutivo da tecnologia no universo adolescente é fruto da incomunicabilidade entre gerações.
Por medo da punição, Tati decide esconder a verdade dos seus pais, mesmo tendo ciência que é uma questão de tempo até eles terem conhecimento do assunto. Enfrentando uma enorme pressão sozinha, ela muda visivelmente, adotando uma nova linguagem corporal, complementada pela fraqueza da voz. O aparente sofrimento é ignorado por eles que, em uma cena importante, relegam-se a conversas sobre trivialidades, como os planos para o almoço. Essa falta de conexão é muito bem construída pela supressão dos seus rostos por todo o filme, exemplificação visual da sua nulidade.
Já Davi (Enrique Diaz), pai de Renet, é bastante ativo na narrativa, embora não seja de uma maneira positiva. Diante da repercussão do caso, ele vislumbra a fuga para a casa de praia da família como saída. No intuito de “proteger” o filho e seu sobrinho Eduardo “Normal” (Pedro Inoue) de quaisquer consequências (ainda que tenha sido incapaz de perguntar a eles diretamente sobre seus envolvimentos na história), revela uma fraqueza moral, educando por exemplo que se esquivar da responsabilidade é a melhor opção. Isso é ainda mais perturbador considerando a sua posição de professor, servindo como indício do ambiente de permissividade do colégio, que foi incapaz de lidar com a questão de forma satisfatória.
Seu contraponto é a sua ex-esposa, que tenta, reiteradas vezes, retomar o relacionamento com o filho. Ao saber da situação, mostra-se mais esclarecida e procura compreendê-lo e guiá-lo. É através da insistência pelo diálogo que ela provoca a reflexão esperada, capaz de guiar Renet a adotar um caminho mais verdadeiro. O antagonismo entre esses dois personagens é muito bem trabalhado em uma sequência onde eles discutem enquanto andam de carro. Os vidros embaçados revelam a incapacidade de um compreender o outro. Progressivamente, o lado da mulher vai ficando mais visível, como o seu entendimento, mostrando-se assim o lado mais racional.
Pequenas inserções visuais como essa e as pichações do banheiro contribuem para o enriquecimento do filme de Muritiba e são notadas desde a primeira cena, quando a figura exótica de uma sereia aparece na visita guiada dos alunos a um aquário. A insistência de todos em focarem mais nos celulares do que no conteúdo didático, reforçado por essa imagem peculiar, propõe uma metáfora visual do caráter apelativo dos smartphones e, seguindo a tradição dos contos, serve como aviso do seu perigo.
O diretor consegue explorar diversas questões dentro do universo criado separando-o em duas partes: a primeira foca na jornada de Tati diante da divulgação do vídeo, escalando exponencialmente até uma resolução. Dela, surge a segunda parte, que aborda o olhar de Renet diante dos mesmos fatos. Contrapondo experiências, obtém-se um panorama mais completo do tema. Porém, nota-se uma clara discrepância entre os segmentos, o que provoca um desnível narrativo.
No primeiro momento, a câmera acompanha o aumento do desespero da garota focando no seu olhar, pontuado por movimentos lentos de câmera que potencializam a tensão. De forma concisa, uma sucessão de cenas revela a falta de apoio daqueles ao seu redor, o que pavimenta as suas escolhas. Em contraponto, a segunda metade da trama adota um tom mais reflexivo, silencioso, permeando entre os sentimentos e atitudes conflitantes do seu interesse amoroso. Embora seja uma ótima oposição aos eventos anteriores, ela carece da mesma progressão narrativa. Assim, mostra-se menos interessante e apelativa, sentido como um arrastamento excessivo da jornada do garoto, redimido quando a resolução final se consolida.
Quando observado na totalidade, “Ferrugem” atende muito bem às expectativas, fornecendo um rico panorama sobre um assunto delicado e provocando a necessária reflexão. Muito do seu apelo vem da excelente estruturação do incidente perturbador no ambiente escolar. Este funciona bem por conta da capacidade de Tiffany Dopke, que consegue trabalhar as vulnerabilidades da sua personagem pelo olhar. De fato, a presença feminina em cena é muito compensadora, sinal do talento das atrizes escaladas, que se destacam muito mais do que seus contrapontos masculinos.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 100 min
Gênero: drama
Direção: Aly Muritiba
Elenco: Tifanny Dopke, Giovanni de Lorenzi, Enrique Diaz, Clarissa Kiste, Duda Azevedo
Trailer:
Imagens: