Por Luciana Ramos

 

No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos da polarização política. Frente a um presidente que resolve dissolver instituições democráticas para se perpetuar no poder, os EUA se dividem em múltiplos lados, com cidadãos lutando uns contra os outros por ideais pouco transparentes.

A supressão é claramente intencional, pois a crítica é a esta sociedade como um todo. Ao longo da narrativa, dispõem-se cenários que vão ampliando o escopo da discussão, mostrando diferentes reações diante do horror da guerra civil. Não à toa, o diretor aposta em quatro personagens arquetípicos para contar essa história, da visão fresca de quem nunca testemunhou algo igual à desumanização inerente a de quem se especializou na cobertura de conflitos armados. Eles viajarão de Nova York a Washington buscando um furo jornalístico e, durante o percurso de carro, testemunharão o inferno vazio de um país perdido.

Na trama, Kirsten Dunst interpreta Lee Smith, uma célebre fotógrafa de guerra calejada pela profissão que, acreditando na iminente queda do presidente (Nick Offerman), se junta ao repórter Joel (Wagner Moura) em uma cruzada por um registro único. Relutantemente, ela aceita a adesão de dois outros membros no grupo: o seu mentor Sammy (Stephen McKinley-Henderson), por quem nutre um grande carinho, e a novata Jessie (Cailee Spaeny), que a vê como um ídolo.

Sucessivamente, eles se deparam com trocas de tiros em diferentes formas. Nem sempre são alvos de tanques ou bombas; na maioria das vezes, trata-se de pessoas que atiram contra concidadãos para cumprir ordens, aproveitar para expor seu lado mais animalesco ou, na pior das hipóteses, apenas para corresponder ao outro lado.

Em uma das passagens mais marcantes, eles param em um lugar semiabandonado e questionam sobre os lados da trincheira. A resposta que recebem, além de simples, é aterradora: “estamos atirando porque estão atirando em nós”, sem saberem de quem se trata ou por quê. Essa opacidade de significado resume bem a tese do diretor. Em outra cena, o grupo adentra em uma cidade que parece pouco afetada pelos acontecimentos. A morosidade de um interior tranquilo assusta os viajantes, que até se permitem brincar de uma vida antiga, experimentando roupas. O enquadramento, no entanto, se abre e mostra dois snipers no topo de um prédio, indicando que essa normalidade é mascarada.

Esse ponto é interessante pois aponta para um outro argumento, embora muito levemente explorado: a realidade captada pela imagem. Nesse caso, a amplificação da imagem muda o contexto do que é mostrado. Em outros momentos, vê-se Jessie fotografando Lee fotografando ação, ou Lee tirando uma foto de Sammy através do vidro – com um filtro intermediário entre o que é mostrado e o objeto em si.

Delicadamente, portanto, toca-se no componente realista da imagem. O fato de Garland escolher jornalistas como seus personagens pressupõe a não adesão a um lado, mas também a referência aos que tentam capturar com objetividade cenários caóticos de guerra e transmiti-los adiante. Ao longo da história, nós consumimos os fatos a partir desses registros, sejam de apenas imagem ou também de som (o cinema documental, em especial, desempenha um papel relevante nisso).

As imagens congeladas acompanham as ações do filme e traduzem bem o que está ocorrendo, até o terceiro ato. No final, somos jogados a uma sequência muito mais aterrorizante do que o captado, mas não só isso: conforme conversado entre jornalistas amigos, apenas uma imagem importa, chamada de “money shot”. Tudo que acontece pelo caminho, portanto, terá menor relevância. A foto final, revelada no início dos créditos, reforça o argumento de que certo reducionismo também é inevitável e perpassam escolhas éticas (que, segundo Lee, todo fotógrafo deveria se abster) e formais – de enquadramento, ângulo ou momento.

A síntese sem querer anula as arestas e, talvez por isso, Garland opte por uma trama menos parcial ou aprofundada em alguns pontos. Debates sobre como os cidadãos se veem, a futilidade do conflito ou a inevitável síndrome do poder em grupos nacionalistas são pontuados em diálogos, mas nunca mastigados além disso. A abrangência, nesse caso é um triunfo, visto que amplia a capacidade do filme de dialogar com diferentes pensamentos.

Esse não é um longa que serve apenas como entretenimento, que almeje causar engajamento emocional na jornada dos personagens ou uma apreciação puramente estética: é uma obra de intuito reflexivo, que visa instigar o espectador a considerar seriamente os rumos da polarização. Ele reflete o momento atual e, ao contrário de vários longas sobre conflitos, é explicitamente antiguerra. 

Ficha Técnica

Ano: 2024

Duração: 1h 49m

Gênero: ação, road trip, suspense, guerra

Direção: Alex Garland

Elenco: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen Mckinley-Henderson, Nick Offerman, Nelson Lee, Jesse Plemons

Veja Também:

Estômago II - O Poderoso Chef

Por Luciana Ramos   Alguns ingredientes foram determinantes para o sucesso de “Estômago” (2008), um filme de baixo orçamento que...

LEIA MAIS

O Dublê

Por Luciana Ramos   Colt Seavers (Ryan Gosling) é um dublê experiente, que se arrisca nas mais diversas manobras –...

LEIA MAIS

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS