Por Luciana Ramos

Ao se lançar em transformar a jornada de uma vida em ficção, cabe ao roteirista observar o que torna a personalidade escolhida única, que características pessoais ou de sua jornada a definem e, mais do que isso, revelam algo de importante para o espectador. Assim, mesmo tratando-se da soma de episódios reais, as (boas) cinebiografias servem a um propósito maior, mais aprofundado, apreendido a partir da conexão emocional estabelecida com o retratado.

Este é o caso de “Hebe – A Estrela do Brasil”. Moldado a partir da sua carreira como apresentadora – e, consequentemente, do seu impacto em um país que cultua a televisão – o roteiro destrincha os aspectos da sua personalidade que a tornaram adorada e, em determinado momento, perseguida.

Hebe (Andrea Beltrão) nos é apresentada já beirando os sessenta anos, com uma carreira bem consolidada e uma família formada. Tão carismática quanto irascível, ela usa o seu programa de sucesso como plataforma para dizer o que pensa. A capacidade de se expor – sem medo de se emocionar em frente às câmeras – é a característica única que a distingue do formato engessado da TV, o que lhe faz ter sucesso e, na mesma medida, o que a ameaça.

A sua constante batalha com diretores e produtores pela liberdade de expressão expande-se à medida em que relata seu descontentamento com os políticos, o que a torna alvo de censura. Não obstante, a inclusão de personagens ditos “polêmicos” no seu programa, como Dercy Gonçalves (Stella Miranda) e Roberta Close (Renata Bastos) – fruto da sua simpatia e respeito pela pluralidade social – também leva os setores mais conservadores (diga-se, preconceituosos) da sociedade a revirarem os olhos.

Como arma de resistência, ela usa o discurso firme e, por vezes, intransigente – este devidamente disfarçado pelos elogios ou falsa modéstia. É a maneira como sabe sucumbir as vontades dos outros às suas, sempre falando que deseja fazer as coisas do seu “jeitinho”, que a torna uma personalidade tão irresistível e segura o filme em seu início, quando, após apresentar a sua premissa, enrola-se em repetições.

A engrenagem narrativa finalmente decola no fim do segundo ato, quando Hebe é forçada a lidar com os frutos do que plantou: na esfera profissional, sofre consequências penais pelas suas falas; na pessoal, sente-se acuada diante de um marido agressivo e ciumento. Este deslocamento para um patamar mais íntimo e frágil da apresentadora mostra-se benéfico ao longa e, embora adote clichês na construção de Lélio (Marco Ricca) como antagonista, serve para acentuar a complexidade da sua jornada enquanto mulher – a discrepância entre seu discurso e ação, a melancolia misturada com a alegria ébria que compartilha com o companheiro e, invariavelmente, a sua conformidade ao machismo que condena na TV.

Outras subtramas, por outro lado, são mal trabalhadas e depõem contra a qualidade da narrativa. É o caso de toda a jornada de Marcelo (Caio Horowicz), seu filho: a sua relação com os empregados, colocada como antídoto à negligência parental, não sai da caracterização simplória e repetitiva. O mesmo ocorre com o debate sobre a sua sexualidade, levemente apontado em uma sequência, mas nunca alvo de uma exploração mais elaborada.

Quando se volta com força à questão da censura, o filme é, enfim, alavancado, revelando não só a hipocrisia dos que a clamam como os seus mecanismos sórdidos de funcionamento. Não obstante, o silêncio imposto à Hebe (que faz questão de o desafiar) é refletido como a perda de toda uma sociedade que, sem o poder de contestação, vê-se completamente à mercê de autoridades corruptas. Por outro lado, ao trabalhar extensivamente a questão, o roteiro cai em uma armadilha: ao inserir ponderações políticas atuais em uma narrativa de época, o conteúdo, sem o devido trato, parece deslocado daquela realidade, causando estranhamento em algumas passagens.

Tido como um problema em uma arte essencialmente visual, o caráter verborrágico revela-se o maior triunfo de “Hebe – A Estrela do Brasil”. É o poder de falar o que pensa com autenticidade, sempre tendo em vista o respeito ao próximo. Certamente, sua ausência deixou uma lacuna na televisão brasileira, hoje tão acostumada a moldes populistas e engessados. Cabe destacar, por último, a fascinante interpretação de Andrea Beltrão, irreparável na sua composição da apresentadora, que consegue transmitir a essência de Hebe ao seu saudoso público.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 112 min

Gênero: biografia, drama

Direção: Maurício Farias

Elenco: Andrea Beltrão, Danton Mello, Marco Ricca, Caio Horowicz

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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