Por Bruno Tavares

 

Muitos diretores possuem maneirismos que tornam suas obras facilmente reconhecíveis. Spielberg, por exemplo, abusa dos close-ups, herdados pela influência de Ingmar Bergman. Scorsese possui forte afinidade com os filmes de máfia, visto sua descendência italiana. Woody Allen produz longas sobre ele mesmo e acaba abordando problemas de gente branca e rica. A lista é longa, mas nela existe um nome que se destaca: Wes Anderson. Este americano, nascido no estado do Texas, é dono de uma obra repleta de estilo próprio e inconfundível.

“Ilha dos Cachorros”, nono filme do diretor, se passa na fictícia cidade japonesa de Megasaki, vinte anos no futuro. Nessa província, o poderoso e corrupto prefeito Kobayash (Kunichi Nomura), descendente da dinastia amante dos gatos, lança uma campanha para exilar todos os cachorros numa ilha utilizada como depósito de lixo. A desculpa para tal ação é uma série de doenças que assola o melhor amigo do homem. Algum tempo depois do banimento, o filho adotivo do prefeito, Atari Kobayashi (Koyu Rankin), sequestra um avião e vai em busca de seu cão guarda-costas, Spots (Liev Schreiber). Chegando à ilha, ele conta com a ajuda de uma matilha de alfas formada por Chief (Bryan Cranston), Rex (Edward Norton), King (Bob Balaban), Boss (Bill Murray) e Duke (Jeff Goldblum) para procurar o animal perdido. Ali também conhecemos os caninos Nutmeg (Scarlett Johansson), Oracle (Tilda Swinton) e Jupiter (F. Murray Abraham), que possuem papeis relevantes no desenvolvimento da trama. Enquanto isso, na cidade, um grupo de estudantes liderado por Tracy Walker (Greta Gerwig) luta para que os cachorros sejam reintegrados à sociedade.

Com um plano de fundo bem estruturado, Anderson segue à risca todos os passos de sua cartilha fílmica, a começar pela construção dos personagens. As figuras dramáticas do diretor costumam ser problemáticas e frutos de famílias fragmentadas. Aqui não é diferente. O jovem Atari perdeu os pais em um acidente e desde então mora com seu tio, que tem pouco apego com crianças. Já Chief foi separado da família ainda filhote, o que ocasionou uma permanente desconfiança na raça humana e dificuldades para construir relacionamentos duradouros. Mesmo que possuam motivações distintas – Atari quer encontrar seu cachorro e Chief se recusa a ajudar – ambas as atitudes são ecos de eventos anteriores, que ainda repercutem nas ações atuais.

 

 

Essa forte conexão com o passado abre um espaço central na trama para a infância, tema recorrente na obra do diretor. Além de dar ênfase aos pequenos, ele as retrata (e nesse caso também os animais) como seres inteligentes, ponderados e mais maduros que os adultos. Enquanto isso, os marmanjos ganham ares inexperientes, rasos e se comportam de maneira infantil. Como arremate final, todos os personagens, sejam eles pessoas ou cachorros, possuem certa dificuldade de exprimir sentimentos. Tal característica fica clara não só nas expressões faciais, sempre muito sóbrias, mas também nos diálogos entre os atores, por vezes bem resumidos.

Em “Ilha dos Cachorros”, a barreira que impede a total compreensão dos sentimentos vistos em tela é trabalhada de modo elaborado. Logo no início da projeção o público é informado de que os humanos só falam japonês e que, por isso, a tradução depende da presença de cachorros, máquinas ou profissionais capacitados. Na ausência de um desses elementos a trama segue na língua oriental sem nenhuma legenda. Para não prejudicar o andamento do filme, Anderson faz uso dos noticiários da TV que reportam, em notícias traduzidas pelo aparelho, as decisões mais importantes tomadas nos momentos nipônicos. Essa é uma construção eficaz que gera um humor genuíno.

Tecnicamente a produção também é primorosa. O apego estético do diretor, talvez a característica mais marcante de sua obra, é facilmente reconhecível. A construção de cenas simétricas, o uso da câmera estática combinado aos movimentos tilt (vertical) e pan (horizontal), os planos abertos e longos, as cartelas de texto e os frequentes flashbacks comprovam que, sem dúvidas, estamos no mundo de Anderson. Para unir todos esses elementos, ele usa a belíssima trilha de Alexandre Desplat, que mescla acordes da cultura japonesa com hits de bandas de pop e rock dos anos 1960 e 1970.

 

 

Vale ressaltar ainda o primoroso trabalho na direção de arte. Os tons, sempre meio retrô, marcam de forma clara os dois ambientes em que a trama se passa. Na cidade, as cores são fortes e vibrantes, enquanto na ilha abundam as tonalidades frias e pastéis. Esse apreço ganha ainda mais importância por conter valor narrativo. Chief, por exemplo, passa por uma drástica mudança de coloração, que marca o momento exato em que sua atitude com Atari se modifica.

Nesta animação, o diretor repete a fórmula de “O Fantástico Sr. Raposo” ao utilizar marionetes e rodar o filme em menos frames por segundo, dando assim mais evidência à técnica do stop motion. É interessante notar ainda que o texano mescla diferentes estilos de arte. Os personagens seguem uma linha específica, que é distinta das animações utilizadas nos programas de TV e também dos desenhos orientais que ilustram a sala do governador Kobayashi. Tal nível de requinte retrata bem a atenção aos detalhes do diretor e transforma o filme em uma produção que merece todos os louros por sua alta qualidade.

Claramente influenciado por Akira Kurosawa e Hayao Miyazaki neste filme, Wes Anderson soube mesclar bem conceitos do cinema oriental e temas atuais, como a proliferação de fake news e a questão dos governos ditatoriais disfarçados pela democracia. De maneira magistral, ele cria um Japão fictício que envolve o espectador e o deixa, como sempre, desejoso por conhecer mais daqueles personagens tão interessantes e singulares. Despontando como um dos diretores com o estilo mais marcado da atualidade, ele entrega em “Ilha dos Cachorros” uma narrativa coesa, inspiradora e de encher os olhos. Um verdadeiro filme de arte.

 

Pôster:

 

 

 

Ficha Técnica:

 

Ano: 2018

Duração: 101 min

Gênero: Crime, Drama

Direção: Wes Anderson

Elenco:  Bryan Cranston, Edward Norton, Bob Balaban, Bill Murray, Jeff Goldblum, Scarlett Johansson, Tilda Swinton, F. Murray Abraham, Greta Gerwig, Koyu Rankin, Liev Schreiber e Kunichi Nomura

 

Trailer:

 

 

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