Por Luciana Ramos
Fosse uma obra 100% ficcional, “João: O Maestro” seria alvo de críticas por seu caráter fantasioso, pois nem o mais criativo roteirista poderia conceber percalços tão acidentais e, ainda assim, decisivos quanto os que apareceram na vida do pianista João Carlos Martins. Mais do que o seu talento como músico, extremamente enfatizado no referido longa, o hoje maestro é o retrato da obstinação que culmina na superação das adversidades.
Sua cinebiografia pauta-se na relação entre paixão e obsessão pela arte. Mostrada pelo fervor com que os três atores que o interpretam (Davi Campolongo, Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero) tocam nas teclas – ao ponto de sangrar em determinada cena – ela é reiterada pelo uso da repetição, em geral por montagens musicais que enfatizam o treino responsável pela perfeição.
Porém, o roteiro (assinado pelo também diretor Mauro Lima) não parece confiar na força imagética, recorrendo à reiteração da palavra: em vários momentos, a definição do termo obsessão como perseguição demoníaca é recontado por algum dos personagens, algo que denuncia o caráter plano da obra.
Esta começa demonstrando seu talento infantil em aulas de piano, fazendo mesmo o mais carrasco dos professores se curvar. As dificuldades que se interpõem, em geral recorrentes à falta de dinheiro, são quase automaticamente sanadas, sem gerar a tensão preterida. O caminho positivo segue-o enquanto adulto jovem, até o seu primeiro acidente bizarro, aos 25 anos. Participando de uma partida de futebol, ele rompe um nervo no braço, o que causa complicações em três dos dedos da mão direita. Seu declamado caráter obsessivo aparece na força de vontade de driblar as limitações para permanecer como um grande pianista, algo posto em prova pela segunda vez por uma agressão na Bulgária.
As sequelas trágicas desses incidentes travam o melhor embate do filme, aquele do protagonista contra ele mesmo, que culmina em reinvenções, símbolos catárticos do poder do ser humano. Esta luta, no entanto, é suavizada pelo uso recorrente de clichês, além do uso de outros elementos que são jogados para serem posteriormente abandonados. É o caso da cena em que seu pai lhe oferece anfetamina antes de uma apresentação, algo somente insinuado em alguns comportamentos, mas jamais aprofundado.
O incômodo com a escolha em tratar de uma trajetória de vida de maneira tão superficial é acentuado pela montagem, que trabalha na linearidade nos primeiros momentos, recorrendo à clichê passagem de tempo ao som do piano, para depois investir na sobreposição dos três tempos narrativos; a incoerência como fruto da indecisão sobre a linguagem preterida.
Ainda que deixe a desejar por se mostrar aquém à outras cinebiografias musicais que demonstram a vocação e a busca pela perfeição (“Ray”, filme sobre Ray Charles, é um dos exemplos), o filme de Mauro Lima possui méritos técnicos que devem ser levados em consideração. O mais evidente é a trilha sonora, composta de gravações originais do pianista retratado: cada melodia encaixa-se perfeitamente à imagem mostrada, tornando a experiência mais agradável.
As atuações dos três intérpretes principais conseguem revelar o espírito do personagem e traçar características em comum, observadas na postura corporal e certa sisudez no relacionamento com outros. Destaca-se Rodrigo Pandolfo, que demonstra maior complexidade de caráter em um período crucial da vida do protagonista.
A direção de arte é um dos maiores destaques pelo trabalho minucioso e atento à pequenos elementos que, juntos, compõem um retrato fiel das décadas retratadas. Em cada enquadramento, há um ou alguns objetos ao fundo que sobressaem aos olhos, como os cartazes da Panam nas paredes do aeroporto ou, posteriormente, de um show do Velvet Underground escondido em uma rua de Nova York.
A história de vida de João Carlos Martins merece ser apreciada pelo seu caráter absurdo, que transforma infelicidades em grandes superações. Mesclando bons elementos técnicos à uma fraca estruturação narrativa, o filme não consegue escapar da regularidade, um resultado aquém do merecido pelo pianista.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2017
Duração: 104 min
Gênero: cinebiografia, drama
Diretor: Mauro Lima
Elenco: Alenxandre Nero, Rodrigo Pandolfo, Caco Ciocler, Fernanda Nobre, Alinne Morais, Davi Campolongo
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