Por Luciana Ramos

A transição dos anos sessenta para os setenta foi marcada por uma forte crise de representatividade que, em parte, se assemelha com o panorama mundial contemporâneo. Diante da quebra do contrato social firmado na Declaração de Independência, que prometia ao povo a cobertura de todas as necessidades básicas para uma vida digna, inúmeros grupos antiestablishment brotaram nos Estados Unidos, sendo o mais famoso o Panteras Negras.

Com um visual bem demarcado e de apelo cool, o autointitulado partido ganhou respeito e seguidores por se colocar como uma espécie de segundo governo, provendo assistência médica, educacional e alimentar de graça a grupos minoritários. Por compreender que a força revolucionária estava na adesão das massas, educou a população negra – infantil e adulta – sobre a estrutura do racismo norte-americano, enquanto articulava a união a outros grupos marginalizados, como os latinos e até os sulistas racistas em prol de um objetivo: derrubar a estrutura governamental para, então, reerguê-la sob pilares mais justos.

A compreensão política de suas ações, combinadas às grandes ambições, levaram J. Edgar Hoover a famosamente classificarem os Panteras Negras como “a maior ameaça à segurança nacional” da época. Gozando de bastante prestígio e usando-o para moldar uma agência aos seus interesses, o fundador do FBI abusava amplamente do poder que lhe cabia para coagir, perseguir e matar.

Foi sob este contexto que Bill O’Neal (Lakeith Stanfield) foi recrutado pelo agente Roy Mitchell (Jesse Plemons) para se infiltrar no Partido. A ele cabia a missão de coletar informações relevantes que ajudassem na “neutralização” de Fred Hampton (Daniel Kaluuya), que ascendia como uma importante voz popular em Chicago. A fim de conquistar a confiança do seu líder e demais membros da organização, ele agia com entusiasmo e radicalização exageradas e erroneamente interpretadas como lealdade à causa.

Ao discorrer sobre a jornada de O’Neal no Partido e as consequências diretas tanto na sua vida quanto na de Hampton, “Judas e o Messias Negro” estabelece um paralelo interessante entre as personalidades dos dois homens. Enquanto o primeiro opera de maneira míope e individual, pensando em pequenos ganhos a curto prazo, o líder utiliza as condições adversas para planejar uma mudança radical na sociedade a longo prazo, pensando sempre coletivamente e, por isso, arriscando a segurança de sua família.

Ainda que tenha conseguido algumas migalhas dessa dinâmica, Bill sente a constante frustração de não atingir o patamar social que acha que merece pelo seu trabalho e, ademais, entra em conflito por concordar com diversas ideias do grupo que deveria fragmentar. Eximindo-se da ampliação do escopo do FBI, que coordenava inúmeras ações fora dos limites éticos, a narrativa opta por trabalhar a conduta questionável da organização (e muito bem documentada, disponível para pesquisa) através da interação entre o protagonista e o agente que o aliciou, uma escolha que funciona muito bem por manter o foco no impacto que a figura de Fred Hampton teve nos Panteras Negras.

O mesmo não pode ser dito do tratamento concedido ao ambicioso plano do dito “messias” do título, que é apresentado, mas não desenvolvido. Ao propor um ponto comum entre as frustrações de grupos tão radicalmente diferentes, o roteiro ensaia uma discussão extremamente interessante, mas que abre mão para seguir a cronologia dos eventos, tornando o segundo ato o mais fraco do filme. Este ganha novo impulso com o aumento da pressão sobre Bill, que conduz a obra a um clímax poderoso e desconfortável, filmado em planos estáticos para enfatizar o horror – um belo contraponto à fluidez que marca o restante da produção.

Na estética, destaca-se também o design de produção, que trabalha a classe social dos personagens através do acabamento dos locais que frequentam, paletas de cores e iluminação: as paredes do escritório e escola dos Panteras Negras são descascadas e dessaturadas, embora bastante coloridas e muito mais iluminadas do que as do FBI ou da casa de Roy, que pontuam visualmente a fria polidez da riqueza de uma instituição que não representa os anseios da população negra.  

O longa também se beneficia da excelente trilha sonora, marcada por batidas jazzísticas, e atuações de impacto, sendo o grande destaque Daniel Kaluuya, que consegue expressar uma imensa gama de emoções – raiva, superioridade, compaixão e assertividade – através das expressões faciais. Em oposição, Lakeith Stanfield realiza um ótimo trabalho ao conseguir expor a fragilidade do seu personagem, o medo aliado à necessidade de impressionar que torna Bill um pouco teatral.

O filme, que concorre a inúmeros óscares, incluindo Melhor Filme, constrói um panorama complexo de forças que atuam como agentes de transformação social. Através de uma narrativa poderosa e que permanece com o espectador muito após o término da projeção, reflete um embate histórico com ressonâncias que persistem até hoje nos Estados Unidos.  

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 126 min

Gênero: biografia, drama

Direção: Shaka King

Elenco: Daniel Kaluuya, Lakeith Stanfield, Jesse Plemons, Dominique Fishback, Dominique Thorne, Asthon Sanders

Avaliação do Filme

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