Por Luciana Ramos
Nos anos 90, sedentos por materiais originais, os grandes estúdios viram a profusão de produtoras independentes tomarem conta do mercado e, assim, decidiram se aliar a elas, fornecendo sustentação (dinheiro) para cineastas com visões autorais e propostas inovadoras. Do combo, nasceram pérolas como “Matrix”, uma saga cyberpunk delineada através do questionamento sobre a realidade. Ao apresentar um mundo insosso onde os humanos inadvertidamente tornaram-se máquinas e contrapô-lo ao vazio existencial que inundava Thomas Anderson, as irmãs Wachoski ousaram em desafiar o otimismo da época em relação à revolução tecnológica. Foram além e, através das ações de Neo, a versão messiânica capaz de dobrar o sistema, estabeleceram debates filosóficos bastante pertinentes, que deram vazão a inúmeras teorias e estudos sobre os significados simbólicos da trama.
Quatro anos após o lançamento do primeiro filme, chegava ao final a trilogia e, desde então, quando abordadas, as diretoras reforçavam que já haviam dito tudo que tinham pensado, frustrando as esperanças dos fãs em imergirem mais uma vez na Matrix. Eis que, dezoito anos depois, chega aos cinemas “Matrix Ressurections”, um filme adaptado aos anseios dos fãs e assumidamente “desnecessário”. A brincadeira sobre o tema, que transparece em um diálogo do Morpheus e em uma cena de reunião de grupo (que chega a citar a Warner Bros.) revela um nível maior de entendimento do que o comum aos blockbusters sequenciais.
Nas mãos de Lana Wachoski (que também dirige o filme, dessa vez sem a irmã Lilly), David Mitchell e Aleksandar Hemon, o roteiro busca justificar a sua existência, argumentando a sede da indústria pela reciclagem de títulos, o apelo da nostalgia – assim como os perigos de trilhar esse caminho – e, de maneira bem articulada, a submissão agora consciente de uma sociedade inteira à Matrix, dialogando com o vício em tecnologias e aparente aumento de certa passividade social.
Tudo isso é descrito dentro da trama, que oferece uma nova camada interpretativa, aparentemente sedimentada na mesma “interface” que a dos espectadores. Neo (Keanu Reeves) é apresentado em sua versão regredida, Thomas Anderson, um designer de games famosos, porém depressivo. Medicado com pílulas azuis, ele aceita que a Matrix foi uma criação da sua imaginação até o momento em que é interceptado por Bugs (Jessica Hanwick), uma jovem que passa boa parte do tempo buscando o homem a quem apenas conhecia como lenda.
Suas intervenções naquela realidade desencadeiam consequências extensas tanto na Matrix quanto na cidade de Io, que luta para permanecer em paz. Ao recobrar sua memória e, assim, aquietar suas ansiedades, Neo decide pedir ajuda ao grupo comandado por Bugs para realizar mais uma (perigosa) imersão no mundo virtual, dessa vez para salvar uma mulher que pensar ser Trinity (Carrie-Anne Moss), embora ela se chame Tiffany e leve uma vida pacata ao lado do marido e filhos. Do outro lado, ele tem sua sanidade sucessivamente questionada pelo Analista (Neil Patrick Harris), que tenta convencê-lo a desistir dos seus planos.
Uma vez estabelecidas as dimensões, a narrativa transita entre referências antigas, preocupando-se em inserir flashbacks que nem sempre funcionam para justificar alguns pontos, e um reboot de personagens importantes, como Smith (Jonathan Groff) e Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II). Ao contrário do original, que era cerebral e exigia uma participação ativa do público, “Ressurections” entrega tudo bem mastigadinho, mostrando-se aquém em potência.
Embora insira pequenos comentários sobre questionamentos filosóficos que marcaram a trilogia, o novo longa resolve centrar a ação dramática em Neo e Trinity, reforçando o elo indissolúvel ente eles. Através desse ponto, Lana Wachoski propõe uma ideia interessante sobre o amor, que transcende barreiras: no filme, mesmo em circunstâncias adversas, eles são sugados em direção ao outro; mesmo sem memória de uma vida em comum, não conseguem evitar a proximidade (uma ideia que também pauta o belo “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”).
O resultado é bonito e emocionante, ainda que contenha alguns pontos inferiores aos filmes passados. A assinatura estética, por exemplo, é diluída em repetições de ideias já usadas, como a mudança brusca de enquadramentos e o efeito bullet time explanado nos diálogos. O verde característico é também suavizado e as coreografias substituem a elegância do kung fu pelo caos das multidões.
O apelo permanece no carisma dos personagens principais em suas antigas ou novas configurações. Yahya Abdul-Mateen II oferece um simpático e mais performático Morpheus, diferente o suficiente do original para calar os fãs aguerridos; já Jonathan Groff e Jessica Hanwick esbanjam talento em seus papeis, concedendo o peso devido dos seus personagens à trama. Neil Patrick Harris, por sua vez, oferece um misto de sua persona já conhecida com um leve twist para o mal, o que o torna bastante aprazível. A dupla Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss sente-se confortável em seus papeis, embora recebam muito menos material para explorar (em especial ela). Mesmo assim, conseguem definir o apelo emocional do filme através da química e ainda dão um gostinho do que pode estar por vir.
Menos intelectual e mais leve, “Matrix Ressurections” carece do brilhantismo do filme de 1999, mas firma-se como um bom produto audiovisual por sua capacidade de dialogar tanto com questões atuais quanto às inerentes a trilogia original. Bem argumentado e escrito, expande um pouco mais do universo para buscar uma razão de ser e, assim, pode se transformar em uma boa nova opção de franquia – diante de tantas, quase sempre descartáveis, que apontam um certo esgotamento criativo do cinema.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Duração: 2h 28 min
Gênero: ação, sci-fi
Direção: Lana Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith