Por Luciana Ramos

 

Inequivocamente, Gal Costa é uma das maiores cantoras que o Brasil já teve. Dona de uma voz potente, que conseguia modular para se encaixar aos arranjos (por vezes, duelando com uma guitarra elétrica) e de cabelos longos e esvoaçantes, ela conseguia se impor nos palcos. Suas inúmeras qualidades artísticas justificavam pensar em traduzir parte de sua trajetória em filme, algo que pudesse sedimentar a sua importância e, mais imediatamente, mostrar a riqueza musical a parcela do público que não a conhece tanto. Esse imperativo aumentou com a partida precoce da cantora, em novembro de 2022. Porém, embora muito bem-intencionado, “Meu Nome é Gal” oferece uma visão limitada da sua vida, deixando sentimentos conflitantes ao final.

Não se podia esperar que uma trajetória tão intensa fosse condensada em duas horas de filme; por isso, as diretoras Dandara Ferreira e Lô Politti acertadamente estabelecem um recorte temporal, de 1966 a 1971, para focar no início da carreira de Gal (Sophie Charlotte), no seu desabrochar. A história começa com a mudança de Maria da Graça Costa Penna Burgos para o Rio de Janeiro, onde se reúne com os amigos baianos Caetano Veloso (Rodrigo Lellis), Gilberto Gil (Dan Ferreira) e Dedé Gadelha (Camila Márdila). Juntos, eles constroem um refúgio para os duros anos da Ditadura, focando no que podem oferecer de novo enquanto artistas. Aos poucos, outros nomes se fundem a amálgama de uma arte brasileira e contestadora, cunhada de Tropicália.

Além de lento, o processo é permeado das subjetividades de cada elemento. No caso de Gal, há uma certa reticência em se desnudar para o público. Sua timidez mescla-se com incertezas sobre si – como se colocar em diferentes situações, o quanto mostrar nas canções, como traduzir (ou produzir) uma versão mais confiante nos shows. O filme foca nesse caráter introspectivo, pontuando mudanças sutis que, unidas, ajudarão a compor a sua persona pública.

Coloca-se como contraponto direto à quietude de sua personalidade o cenário político brasileiro da época. Imagens de arquivo misturam-se a sequências que emulam filmes em 8mm, inserindo diretamente os personagens da trama naquele contexto. A violência e dureza do regime, enumeradas em falas e pequenos cortes, impulsionam Gal para sair do lugar de apatia, assumindo paulatinamente uma posição de enfrentamento, seja nos palcos, como quando canta “Divino Maravilhoso” no Festival MPB TV Record (1968), ou mesmo ao caminhar nas praias com vestes pequenas e cabelos esvoaçantes. Uma das argumentações do filme é exatamente que a sua insistência em ser e viver livre já é, por si só, um desafio à Ditadura.

De modo geral, o longa é bastante agradável, em especial nas cenas em que insere pequenas doses de humor na convivência entre amigos. Passagens entre Gal e sua mãe, Mariah (Chica Carelli), também são interessantes pois estabelecem de maneira mais firme o duelo entre aquiescer e expressar seus desejos. A intimidade entre as duas facilita a composição e ainda oferece momentos comoventes de reflexão sobre suas jornadas.

Esse mesmo ponto é diluído em outras sequências marcantes, já que o filme muitas vezes opta em deslocar o foco para personagens mais efusivos, como Caetano e Gil, relegando Gal ao indesejável papel de espectadora da própria história. É um problema do roteiro, que denuncia dificuldades na arquitetura da história: momentos importantes e rotineiros se misturam sem diferenciação, falhando em marcar com o vigor requerido os pontos chave de mudança na trajetória delineada. Do mesmo modo, cenas musicais são apresentadas de maneira apática, sem focar nas contribuições artísticas de Gal em cada canção, em especial nas escolhas de interpretação do material. Assim, o título de “maior cantora do Brasil” é mais falado do que propriamente mostrado.

O que mais incomoda, no entanto, é o final. Este foca no show Fatal, de 71, onde a protagonista se coloca como uma figura desafiante, que assume de vez o peso de se colocar como uma artista política. Este é subitamente interrompido, tolhendo o público da recompensa pelo investimento na trama. Sem essa catarse, resta a indesejada sensação de que o filme não consegue traduzir a potência da cantora que visa prestar homenagem. As imagens da Gal real cantando, que invadem o desfecho e guiam os créditos finais, eram esperadas, mas traçam um paralelo que coloca a ficção das diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi em desvantagem.

Ainda assim, há de se destacar o prazer que é assistir à projeção, mesmo com os problemas enumerados. A dinâmica entre os personagens é excelente e proporciona momentos tão engraçados quanto tocantes. O coração da obra é carregado por Sophie Charlotte, que está ótima em sotaque, porte e voz. Ela consegue transmitir a revolução interna de exterior sereno que marcou essa época da vida de Gal – uma doçura firme, que sabia se colocar quando preciso. Enumerando trabalhos consistentes, ela vem se desenhando como uma das principais atrizes de sua geração.

Rodrigo Lellis destaca-se não só pela similaridade com Caetano como por saber traduzir sua verve contestadora. Já o Dan Ferreira de Gil, embora fisicamente mais distante do cantor, imprime a calma em fala arrastada, porém reflexiva, demonstrando grande sensibilidade em observar os eventos à sua volta. Outro destaque é Luis Lobianco, que interpreta o empresário Guilherme Araújo e concede gás ao longa, roubando a cena toda vez que aparece.

As arestas não aparadas de “Meu Nome é Gal” impõem a reflexão de que maior refinamento no roteiro – em especial no tempo de cada cena e nas demarcações dos pontos importantes – poderia ter se traduzido em um filme melhor sobre Gal, que certamente merecia. Porém, as suas imperfeições não impedem em nada a apreciação de uma história gentil, engraçada, tocante e tão necessária.        

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 2h

Gênero: biografia, drama, musical

Direção: Dandara Ferreira, Lô Politi

Elenco: Sophie Charlotte, Chica Carelli, Dan Ferreira, Luis Lobianco, Camila Márdila, Rodrigo Lellis

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