Por Pedro Porto
Trabalhando pela primeira vez em um longa-metragem sem seu colaborador habitual, Felipe Bragança, a cineasta Marina Meliande inicia seu novo filme nos colocando em contato direto com o apreço da protagonista pela natureza e pela manifestação de sua individualidade, de momentos em que essa sinergia entre a paisagem e o ser humano que a ocupa compõem a própria trajetória da personagem.
Em “Mormaço”, a advogada Ana (Marina Provenzzano) divide sua vida entre o lado social – que inclui beber com os amigos e ter um caso com seu vizinho (Pedro Gracindo) – e o lado profissional, onde trabalha e luta pelo direito de moradia de uma comunidade do Rio de Janeiro em pleno período de realização das Olimpíadas de 2016.
Aos poucos, tomada pela apreensão do cotidiano, seu corpo começa a contrair estranhas manchas e nem o seu médico consegue detectar o que, de fato, ocorre. Este ponto central o aproxima-se de “Mal do Século” (Todd Haynes, 1995), onde o ambiente deturpador contribui ativamente para a condição da protagonista. Esta abordagem condensa um misto de comentário sociopolítico e filme de horror à la David Cronenberg, firmando o território em um tom crescente de angústia, gerada por personagens e estendida às reações do espectador.
Acompanhar os movimentos do corpo de Ana é importante para se alinhar à trama, que gira em torno dessa relação entre matéria e a ocupação dos espaços públicos e privados. Aqui, o verdadeiro horror vem de fora, do calor em combustão das manifestações sociais, para dentro, na angústia e no enclausuramento dos espaços fechados. O filme mira a política social, com ecos de “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, mas seu verdadeiro alvo é o indivíduo, o monstro que abriga o concreto, a cidade, e se instala dentro das paredes de cimento.
Dessa forma, o corpo é resistência que vem da terra, do contato com a natureza e com as pessoas, e se expande a todos os cantos de seu apartamento. A sua deturpação nasce da relação conflituosa entre público e privado: não reside em Ana, tampouco nas pessoas da comunidade que defende ou no governo, mas no ar sufocante que cobre o cotidiano do Rio de Janeiro e na matéria que o respira e o abriga.
Assim como o mormaço que cobre a cidade, esse ar tóxico opera nas ruas e migra para o apartamento: ele se apropria do corpo de Ana como se ela fosse feita de material de construção, mas sua origem é a ansiedade social que nunca afasta o cidadão brasileiro de seu cotidiano e de seus afazeres.
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 94 min
Gênero: Drama, Horror
Diretora: Marina Meliande
Elenco: Marina Provenzzano, Analu Prestes, Pedro Gracindo, Igor Angelkorte