Por Luciana Ramos
Olhando as suas terras, Hap Jackson (Rob Morgan) lembra a história do avô e sente que aquele terreno não é de fato seu: historicamente, brancos arranjaram desculpas para tomar a posse dos negros, forçando-os a recomeçarem em outro lugar. A chegada de Henry (Jason Clarke), de certa forma, reafirma tal convicção: dono da fazenda onde Hap é arrendatário, ele exige cada vez mais, sempre em tom de ameaça. Em determinado momento, sua mulher, Florence (Mary J Blige), é “requerida” a largar seus filhos por três dias para ajudar a jovem Laura (Carey Mulligan) a cuidar das suas meninas, doentes com escarlatina. Incapaz de confrontar o casal por medo de retaliação, aquiesce, repetindo na sua mente que não é um objeto para ser possuído por outra pessoa.
A silenciosa angústia sentida por Hap e Florence é desafiada com a volta do filho Ronsel (Jason Mitchell) da Segunda Guerra Mundial. Além dos horrores experimentados no campo de batalha, ele também pôde sentir a liberdade acompanhada do respeito. De volta ao Mississippi, tem dificuldades em aceitar o escancarado preconceito com que é tratado, que pretende humilhá-lo e reduzi-lo. Tendo sua atitude condenada pelos pais, acha em Jamie (Garret Hedlund), irmão de Henry, um amigo. Ambos veteranos, conversam sobre como as experiências passadas o moldaram e, consequentemente, como sentem-se desconexos da realidade do sul americano. A amizade entre eles, porém, deve ser mantida em segredo para segurança de ambos.
As experiências dessas pessoas ajudam a compor o panorama da vivência no sul americano na década de 50, onde a segregação imperava e os negros viam-se de mãos atadas. A escolha da localidade não é por acaso: o Mississippi foi um dos estados de maior repressão racial, onde grupos nojentos como KKK agiam sem escrúpulos. “Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi” escancara a ferida ao trabalhar a tensão entre uma família branca e uma negra, oferecendo perspectivas diferentes sobre os fatos.
As seis vozes que narram o filme contam experiências diferentes, mas que tem em comum o fato de terem sido decisivas para moldarem suas personalidades. A dissonância de impressões sobre o mundo oferece por si só complexidade a história, acentuada pela escolha da diretora e roteirista Dee Rees (que co-escreveu com Virgil Williams) em fugir de generalizações simplórias. Na trama, nem todas as personagens brancas são desprovidas de caráter, como é o caso de Laura e Jamie, construídos como compreensivos e empáticos, embora infelizes por sentirem-se presos. Mesmo assim, a mulher não se salva de reproduzir a premissa que suas necessidades vêm acima das de Florence e ele exprime certa ignorância ao não dimensionar o quanto sua presença impõe um potencial risco a Ronsel.
Tecido como um épico, o filme explora a beleza da zona rural com enquadramentos grandiosos, que apresentam novos elementos à cena com lentas e constantes movimentações. A fotografia de Rachel Morrison destaca-se ainda por tecer um jogo de cores e sombras em belíssimos planos. As imagens são potencializadas pelas competentes atuações do elenco diverso e em sintonia, que sabe pontuar as nuances do roteiro. Rob Morgan e Mary J. Blige, em especial, conseguem traduzir a complexidade de sentimentos experimentadas por Hap e Florence com uma sutileza tocante.
Com construções imagéticas fortes e poderosas, “Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi”, adaptação do romance de Hillary Scott, oferece um panorama amplo e impactante do racismo no sul americano dos anos 50 que, como a lama que impede Laura de se sentir limpa, impregna e contamina todos os ambientes.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 134 min
Gênero: drama
Diretora: Dee Rees
Elenco: Carey Mulligan, Garret Hedlund, Jason Mitchell, Rob Morgan, Mary J Blige, Jason Clarke, Jonathan Banks
Trailer:
https://youtu.be/xucHiOAa8Rs
Imagens: