Por Felipe Galeno

Em “Na Estrada”, o estadunidense Jack Kerouac escreveu: “Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância”. Essa imagem se consolidou, ao longo do anos, como um dos muitos símbolos da cultura e da identidade norte-americana, tendo servido de inspiração para os mais variados tipos de obras de arte. É sobre a estrada que caminha o longa vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2020 e indicado a múltiplos Óscares: não apenas sobre a imagem simbólica desses espaços, mas sobre o que eles significam para um grupo bem específico que os habitam.

O filme é inspirado pelo livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, obra de não-ficção da autora Jessica Bruder que explora a vida dos trabalhadores que, por consequência do colapso econômico de 2008, adotaram um estilo de vida nômade, passando a habitar em vans e atravessando o país por entre empregos temporários. A simples trama acompanha Fern, protagonista fictícia interpretada por Francis McDormand, que, após perder o marido e ter sua cidade apagada do mapa, decide partir com seu trailer.  Ao longo do caminho, ela conhece e interage com outros “errantes”, a maioria interpretada por não-atores.

Apesar de ser um dos principais diferenciais do filme, a presença desses personagens da vida real não é novidade para quem conhece a carreira da diretora Chloé Zhao, que comanda a produção. Em seus dois longas anteriores, a cineasta trabalhou exclusivamente com elencos não profissionais e essa bagagem o que traz muito da autenticidade de “Nomadland”. O talento de Zhao na direção de elenco é visível não só na forma sensível como captura-os interpretando a si próprios, mas também na maneira como filma a veterana McDormand. É um olhar humano profundo em interesse, empatia, um pouco neorrealista na forma como se move em direção a esses indivíduos.

Essa humanidade se apresenta em cada elemento formal e caminho da narrativa. Uma das estratégias mais interessantes do roteiro está na forma como certas cenas são iniciadas a partir de um cenário mais ou menos familiar para, então, subverter a expectativa ao optar por uma solução menos esperada. É um longa que recusa certos recortes mais previsíveis da história (o melodrama político ou a lamentação miserável) e escolhe se construir de maneira mais complexa, essencialmente humana, que olha para seu enredo com um senso de realidade verdadeiro ao invés de um realismo ensaiado.

Talvez seja por essa escolha que os momentos mais comoventes do filme sejam tão marcantes. Zhao extrai alguns diálogos e gestos fortíssimos e não tenta maximizar seus impactos através do exagero ou da afetação, como alguns fariam. Em contrapartida, ela compreende que é em sua naturalidade que esses elementos têm maior peso para o espectador e, assim, ao conservar a honestidade e intimidade de tais momentos estabelece-se uma relação profunda entre espectador e personagens.

A câmera captura habilmente a graça natural das paisagens vastas em seus belos planos abertos, mas sabe bem quando se fechar em um close simples e direto para deixar que os rostos, gestos e expressões das figuras humanas falem por si próprios e deem a dimensão dos sentimentos que estão no centro da obra.. Se não fosse por essa percepção da execução, seria difícil transmitir tanto dos anseios dessas pessoas e do significado que essas estradas e espaços que eles habitam possuem.

Quem se beneficia de toda a qualidade envolvida no projeto é Frances McDormand, que entende e aproveita o material ao máximo, e brinda quem assiste com a atuação mais cativante do ano. Existe tanta sintonia entre McDormand e Zhao que é até surpreendente saber que esta é a primeira vez que trabalham juntas. A atriz ficou tão fascinada com o talento da diretora ao assistir seu último filme, “Domando o Destino” (2017), que resolveu ir atrás da diretora para seu próximo trabalho. A parceria dá mais do que certo e Frances consegue com facilidade entender a protagonista – seu senso de liberdade e movimento, suas fragilidades e desejos – para, então, encarnar isso em cada expressão capturada pela câmera, sempre com toda a sutileza do mundo.

Como a frase de Kerouac, “Nomadland” também compreende que há sempre uma estrada em qualquer lugar para qualquer pessoa, sendo o foco pautado na experiência desses indivíduos. Se o longa lança um inteligente olhar sobre o que os espaços carregam da cultura americana, ele só o faz por causa da importância que essas estradas têm para os seres humanos que nela – ou por ela – vivem. É sempre para pessoas e através de pessoas que “Nomadland” se move e enxerga o mundo.

FICHA TÉCNICA

Ano: 2020

Duração: 108 min

Gênero: drama

Direção: Chloé Zhao

Elenco: Francis McDormand, David Strathairn, Linda May, Swankie

Avaliação do Filme

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