Por Luciana Ramos
Em pleno Carnaval, um corpo em decomposição jaz sob o sol quente, parcialmente atacado por moscas e cachorros. Um homem em um fusquinha amarelo para e abastece o carro, quando se vê interpelado por policiais mais interessados em interrogá-lo do que cumprir sua função primaz de dar conta do defunto. O prólogo de “O Agente Secreto” traduz muito bem a “época cheia de pirraça” que viveu o Brasil à luz da Ditadura Militar, contemporizando a inversão de valores em um sistema que descarta gente e protege instituições corruptas.
Transitando em uma miríade de esquinas, becos, cinemas e prédios públicos, sempre olhando à espreita, está Marcelo (Wagner Moura), codinome de um home marcado para morrer, mas sem saber exatamente por quê. Acolhido pela simpática e sincera Dona Sebastiana (Tânia Mara, uma alma pulsante no filme), ele se vê cercado de pessoas em condições similares, transeuntes que escondem suas identidades na tentativa de sobreviver. Sem saber direito em quem confia, o homem se apega a fragmentos de informações e ajudas para tentar “se proteger do Brasil”, como diz Elza (Maria Fernanda Cândido), sua possível aliada.
Subvertendo a lógica do título e do que espera de um suspense, o longa de Kleber Mendonça Filho costura ideias aparentemente díspares em uma colcha de retalhos bem costurada a fim de explanar uma ideia de Brasil. Assim, combinam-se o Carnaval e a morte, a memória e o apagamento da identidade, a lenda urbana e a verdade não-dita nas páginas de jornais, a contagem de mortos e a pulsão de vida e, em última instância, a banalidade da violência frente ao preço de uma vida – com os seus desdobramentos em quem fica para trás. Essa última ideia, força-motriz do filme, abarca uma noção bem colonialista de país, que perdura por privilégios, corrupções, egos e certeza da impunidade. Se na realidade de 2025 não se pode afirmar que tal lógica está expurgada, muito (mas muito) menos se diria da Recife de 1977, no auge da repressão.
Neste panorama, Marcelo é menos um herói romântico ou lutador do que um pai de família, pacato e assustado que desesperadamente busca resistir, tanto na manutenção da sua identidade quanto da sua vida. Assim também é o cinema de Kleber, que se articula como pensador, refletindo sobre os tempos passado, presente e futuro. Seus filmes possuem um quê de arquivo, de resgate da memória, de lugares, personagens, “causos” e tipos. Sua Recife é sempre tão pulsante quanto violenta, reflexo de um país que se camufla em cordialidades superficiais e se nega a olhar-se a fundo. Com humor e malícia, transitando entre drama, suspense e comédia, ele traz tudo à tona em “O Agente Secreto” seduzindo o espectador para fazê-lo encarar o passado. Ao unir uma ponta aparentemente desconexa no finalzinho da projeção, lança luz sobre o que se perde quando uma memória é suprimida, também dando caminhos de resistência.

As cores quentes, quase escaldantes da fotografia de Evgenia Alexandrova traduzem as pulsões que latejam no filme, enaltecidas pela trilha sonora e montagem primorosas. Presta-se uma pequena homenagem ao cinema a partir da metáfora recorrente do filme “Tubarão”, mais assustadora na cabeça de um garotinho que a realidade ao seu redor, ignorada pela devida proteção dos seus familiares queridos. O perigo que sempre ronda, mas em ambiente lúdico, espaço de sonho e catarse para uma população reprimida – incluindo a válvula de escape de atividades não muito decorosas no escurinho do cinema.
Por si só, o argumento do longa já seria um trabalho fenomenal, mas “O Agente Secreto” opera ainda em outro patamar também interessante: o de maturidade de um cineasta. Ele combina elementos de filmes pregressos, seja na repetição de temas ou na construção de simbologias fortes a partir da observação do mais banal e popular do povo brasileiro, sendo quase uma continuidade de “Retratos Fantasmas” em sua reflexão sobre os espaços e personagens de Recife, apagamento e recuperação de memória e, em especial, do papel do cinema frente a tudo isso.
No seu centro, dispõem-se atuações brilhantes, como as de Wagner Moura, Tânia Mara, Alice Carvalho e Maria Fernanda Cândido, que conseguem guiar o tom do filme sem perder complexidade. Para os amantes de boas histórias pitorescas, há ainda o apelo da perna cabeluda, pronta a atacar amantes desavisados. Ela, como o tubarão, nunca some de verdade, pairando no imaginário como uma ameaça velada, tal qual a Ditadura. Para ver e rever.

Ficha Técnica
Ano: 2025
Duração: 2h 38m
Gênero: suspense, drama, thriller político
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Alice Carvalho, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Carlos Francisco, Hermila Guedes, Thomás Aquino, Isabél Zuaa, Tânia Mara





