Por Luciana Ramos

Pode-se dizer que o cinema é uma arte curiosa por abarcar dois lados distintos, o artístico e o mercadológico, sempre tensionados, mas igualmente importantes para a produção de obras com amplo impacto cultural. No mundo das animações, talvez o mais deslumbrante produto dessa dicotomia seja “O Rei Leão” (1994), que combinou poesia, densidade dramática e o apelo familiar dos graciosos números musicais da Disney. As projeções financeiras modestas do projeto, tratado como um produto B, tornou possível aos realizadores a exploração de técnicas e referências que, uma vez inseridas no corpo da história, concederam uma profundidade até então pouco comum a obras do gênero.

Vinte e cinco anos depois, o estúdio encontra-se em um patamar completamente diferente: dona de franquias de apelo popular expressivo, domina as bilheterias mundiais com poucos, mas seguros investimentos. Isto explica em parte a iniciativa em refazer seus clássicos animados em versões “live-action” – notando-se uma tensão maior para o aspecto financeiro da obra cinematográfica, o que minimiza possibilidades de inovação.

Um produto deste contexto, o novo “O Rei Leão” segue fielmente a cartilha do produto original, chegando a remontar sequências inteiras plano a plano. Se a familiaridade pode mitigar um pouco do entusiasmo do espectador, este é devidamente compensado pela qualidade técnica da obra: é absolutamente impressionante o nível de detalhes dos animais, desde a movimentação individual dos pelos à diferença de texturas entre espécies. A fidelidade estende-se ao respeito à anatomia e movimentação de cada animal, o que concede a produção um ar hiper-realista.

Este aspecto quase “documental” forjado da qualidade da animação ao mesmo tempo provoca espanto e facilita a imersão na história, mas também provoca rusgas não notadas na obra anterior. Ao tentar copiar todos os elementos que funcionaram no filme de 94, o diretor Jon Favreau (que já obteve sucesso na nova adaptação de “Mogli: O Menino Lobo”) ignorou um aspecto fundamental: a liberdade fantasiosa da animação em 2D, que consegue moldar o mundo com regras próprias que, por mais absurdas que sejam, tornam-se plausíveis aos olhos do público.

Diante disso, é perfeitamente aceitável que um suricato dance hula ou que elefantes, hipopótamos e girafas se juntem em uma festiva pirâmide onde um pequeno leão ocupa o topo (uma metáfora bem clara de hierarquia). Já numa configuração pautada no hiper-realismo, a impossibilidade de recriação desse tipo de sequências fantasiosas é amplamente sentida; nota-se uma lacuna criativa jamais superada.

O problema acomete também o humor, que não combina com a solenidade estética da Pedra do Reino. Assim, parecem perdidos os comentários ácidos de Zazu ou a piada sobre espaço pessoal envolvendo as hienas, repetida à exaustão. No entanto, esta incongruência exime a participação de Timão e Pumba que, ao trafegar mais no limite do deboche, proporciona o desejado alívio cômico e, assim, firma-se como uma das melhores coisas do longa.

Narrativamente, sofre-se ainda com a opção em estender algumas cenas de modo a torná-las mais explícitas, como a revelação do desejo de Scar por Sarabi, algo antes apenas insinuado. Tais problemas de construção narrativa, ainda que afetem a qualidade narrativa da obra – em especial pela perda de concisão – não anulam por completo o impacto emocional da história, que explora a poesia e o sofrimento inerentes ao ciclo da vida de qualquer um.

Da importância da origem familiar e todo o peso da formação identitária ao niilismo gracioso de “Hakuna Matata”, passando pela responsabilidade civil e papel social, o filme discute em detalhes a configuração de uma comunidade e o papel de cada indivíduo, observando a harmonia entre os seres e o resultado catastrófico do abuso de poder. Mais aprofundado do que a maioria dos remakes e derivados genéricos hollywoodianos, “O Rei Leão” oferece uma linda mensagem e, embora permaneça à sombra da obra original, merece ser apreciado.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 118 min

Gênero: animação, aventura, drama

Diretor: Jon Favreau

Elenco: Donald Glover, Beyoncé, Seth Rogen, Billy Eichner, John Oliver, James Earl Jones, Chiwetel Ejiofor

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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