Por Luciana Ramos

No premiado filme “Filhos do Silêncio” (1986), William Hurt interpreta um professor de inglês que é contratado para dar aulas a meninos surdos e se apaixona pela zeladora do local, uma mulher jovem com a mesma condição que se recusa a falar, vivida por Marlee Martin. O romance entre os dois é pautado pela vontade dele em “ajudá-la” a ter uma experiência de vida mais holística, ou seja, inserir a fala como ferramenta de comunicação. A resistência da mulher é a fonte principal de tensão dramática e o seu grito gutural ao fim marca a sua submissão ao desejo dele. Essa narrativa, embora romantizada, claramente pontua a surdez como deficiência e, portanto, algo a ser combatido ou superado.

Em movimento contrário, o ótimo debut diretorial de Darius Marder, “O Som do Silêncio”, interpreta a surdez como uma condição especial e, assim, presta respeito aos indivíduos que a possuem. Para isso, lança-se a contar a jornada de Ruben Stone (Riz Ahmed), um baterista de uma dupla de metal (complementada pela namorada) que é invadido por ruídos e distorções no meio de um show. A sua esperança de que a sensação desconfortável desapareça não se concretiza e, após uma consulta com um especialista, ele descobre estar perdendo a audição de maneira acelerada.

Inicialmente resistente, o rapaz acha que pode manter sua rotina normalmente, tocando de memória. Não é apenas a negação que lhe consome, mas também o medo de perder o controle e o amor da sua vida. Incapacitada de lidar com a situação, Louise (Olivia Cooke) procura uma saída: a adesão de Ruben em uma comunidade que acolhe pessoas com deficiência auditiva, realiza treinamentos, ensina a língua dos sinais, entre outros afazeres.

O mais importante, segundo o próprio coordenador do local, Joe (Paul Raci), é trabalhar a aceitação da surdez como uma condição permanente, ou seja: primeiramente, deve-se desvencilhá-la de estereótipos limitantes (a interpretação como deficiência, por exemplo) para, em seguida, livrá-la do pensamento mágico que apela para resoluções fáceis e irrealistas, como a recuperação plena da capacidade auditiva.

Ruben aceita ficar – em parte pela sua falta de perspectiva – mas abertamente refuta o pedaço mais fundamental do processo, a aceitação. Transitando claramente entre os estágios do luto, ele se engaja na comunidade sempre com o pensamento preso no passado, no retorno ao seu conforto, na sua vida anterior e, embora goste da sua nova rotina, possui dificuldade em renunciar ao controle, um interessante ponto da sua essência: por ser viciado em drogas, ele precisa de certo nível de certeza e ocupação para evitar uma recaída.    

Embora estruturalmente simples, o longa de Marder encontra metáforas interessantes para aprofundar sua discussão, como a oposição entre a profissão de Ruben e sua condição, entre o sentido do rock para ele e para Louisa (ele possui tatuagens, sinal de comprometimento; ela não, já que encara a banda como um sinal de rebeldia ao pai rico) e o delineamento da quietude como sinal de paz em contraponto ao barulho, instrumento do caos. Em um lindo momento, ainda trabalha a comunicação entre duas pessoas surdas através do batucar no metal de uma escorregadeira, estendendo assim a compreensão do conceito muito além das palavras.

Eximindo-se de soluções simplórias, a narrativa mostra-se interessada em traduzir a experiência do seu personagem e vale-se, para isso, de um requintado trabalho de design de som, que transita entre o áudio cristalino e o ruído perturbador em um balanço rítmico. Os fragmentos de som que impedem Ruben de entender e ser compreendido têm como ápice a sequência da festa na casa de Richard (Mathieu Amalric), configurando um importante ponto de virada para ele.

É essencial ressaltar, portanto, que este é um trabalho de pós-produção. Assim, o papel exigiu que o ator Riz Ahmed concedesse uma dimensão sensorial extrema ao seu personagem, criando suas dificuldades de interação a partir apenas das indicações do roteiro, um trabalho dificílimo. Transparece em cena, portanto, a sua exímia técnica, que apresenta com naturalidade as limitações de Ruben no seu novo universo e dá o tom a todas as interações do filme.

Seu talento, já reconhecido na ótima série “The Night of”, alçou novas dimensões e foi devidamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de Melhor Ator. Paul Raci, seu companheiro de cena, também foi agraciado com uma indicação pela performance sensível e bonita de um personagem embebido de compaixão, que reconhece a luta de Ruben por já tê-la vivido, mas tem em mente a responsabilidade com os demais que confiaram em sua missão.

Sem maiores virtuosismos estéticos (que seriam absolutamente desnecessários), “O Som do Silêncio” se preocupa em mergulhar ao máximo na jornada de sensações de seu protagonista em meio a descoberta de uma nova condição que testa seus limites enquanto o apresenta a uma nova faceta da vida. É um trabalho primoroso de um diretor iniciante que parece ter muito a dizer.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 120 min

Gênero: drama

Direção: Darius Marder

Elenco: Riz Ahmed, Paul Racy, Olivia Cooke, Mathieu Amalric

Avaliação do Filme

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