Por Luciana Ramos

 

A mistura de clássicos literários com uma boa dose de realidade brasileira tende a criar obras cinematográficas bem interessantes, a exemplo de “A Montanha que se Move”, “As Boas Maneiras” e “O Lobo Atrás da Porta”, este último do cineasta Fernando Coimbra, em sua primeira parceria com Leandra Leal.

O tom por vezes fatídico das obras originais, que exploram dilemas morais ao limite, escancarando contradições humanas, recebe uma nova camada crítica ao ser adequado à estrutura complexa e arraigada em sistemas de poder que rege nosso país, mostrado de maneira crua, despida de verniz.

O fino balanço entre ludicidade e brutalidade é almejado em “Os Enforcados”, adaptação de Lady Macbeth, através da contraposição entre a escalada de violência e boas doses de humor, sempre atreladas à personagem de Leal, em seu segundo projeto com Coimbra. Dessa vez, ela interpreta Regina, uma dondoca do jogo do bicho que deseja usufruir dos seus ganhos, especialmente os materiais, sem arriscar o próprio pescoço. Para isso, ela tem o marido Valério (Irandhir Santos), uma figura de início vacilante que tenta se desvencilhar do império do bicho para obter um pouco de paz de espírito, mas é impelido pela mulher a matar o próprio tio (Stepan Nercessian).

Este crime é apenas o primeiro degrau de um banho de sangue que inevitavelmente se desenrola como um dominó que não para de se mover para acuá-los. Embora unidos no plano, Regina e Valério possuem reações diferentes face ao terror que se mostram capazes de cometer: ela redobra a tentativa de controle, enxergando os desenrolares inconvenientes como pequenos percalços até ser assombrada de maneira frontal pelo ocorrido; ele, pelo gostinho de poder que parece lhe impregnar e, assim, estimular a novos atos de violência.

Bem construído e envolvente, “Os Enforcados” se beneficia de uma composição eficiente dos personagens principais, elevado pelo talento do elenco. As pequenas doses de absurdo inseridas cirurgicamente em nada desfalcam das representações caricatas da elite brasileira escancaradas na mídia de tempos em tempos.

O pano de fundo de uma obra interminável torna apenas a narrativa mais interessante, visto que possui lógica e peso na trama, mas também serve como arsenal simbólico do poder e podridão que cercam o mundo do jogo do bicho. Os sons de martelos e marretas ajuda a criar uma tensão palpável e insistente. Há, nesse sentido, claramente a intenção de rasgar a fantasia da “família de bem” e aprumada, em especial pela contraposição da caracterização da personagem de Leal com os seus atos.

A carta de tarô que nomeia o filme é uma clara referência à profecia das bruxas da peça original e pontua a capacidade de ilusão da Lady Macbeth brasileira, Regina, que interpreta a ideia de agarrar uma oportunidade como salvo-conduto para matar, subornar, extorquir e manipular.

“Os Enforcados” não é uma obra superlativa ou incontestável, mas engaja pela competência e oferece catarse na compreensão do diretor da necessidade de um final apoteótico, brilhantemente conduzido por Leandra Leal. Assim, torna-se mais um filme que denota a ótima fase do cinema brasileiro, capaz de unir realidades distantes, centrifugá-las e criar algo único, próprio.

Ficha Técnica

Ano: 2024

Duração: 2h 3m

Gênero: suspense, comédia

Direção: Fernando Coimbra

Elenco: Leandra Leal, Irandhir Santos, Irene Ravache, Thiago Tomé, Pêpê Rapazote, Ernani Moraes, Augusto Madeira

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