Por Luciana Ramos

 

Ira Sachs construiu uma sólida carreira no cinema independente americano, apostando na capacidade dramática de histórias simples, de pessoas com vidas ordinárias. É exatamente esse o tom de “Passagens”, seu primeiro longa rodado na França. À primeira vista, trata de amor e desejo, mas lentamente caminha para reflexões mais aprofundadas sobre narcisismo e dor.

A história acompanha um triângulo amoroso entre um alemão, um inglês e uma francesa. O filme começa com uma gravação do novo filme de Tomas (Franz Rogowski). Irritado com um figurante que não consegue descer uma escadaria do jeito que ele quer, Tomas oferece uma longa explicação sobre o movimento requerido: para ele, a escada é só um espaço de passagem, que pode ser encarado de forma contida e responsável ou de qualquer jeito, com mãos abanando e passos tortuosos, que demonstram despreocupação com o impacto da ação nos demais transeuntes.

A cena é pequena e serve, à primeira vista, para delinear a necessidade de controle do personagem, mas, na verdade, resume muito bem o comportamento dele durante o filme. No campo amoroso, Tomas é esse cara eufórico e estabanado, que parece ser incapaz de assimilar as consequências de suas escolhas. É uma construção tão flagrantemente narcisista que chega a causar estranhamento no começo da trama, mas, conforme a trilha de devastação amorosa se alastra, torna-se impossível não se sentir compelido a descobrir o destino de cada envolvido – ou, em outro ângulo, quanta dor pode ser tolerada em prol de um relacionamento.

A história toda começa na festa de encerramento do projeto de Tomas. Animado e feliz, ele fica irritado com Martin (Ben Whishaw), seu marido de longa data, por não querer dançar. A jovem Agathe (Adèle Exarchopoulos) se oferece para a missão e, poucas horas depois, ele vai para a sua cama. No dia seguinte, ele chega em casa eufórico, contando para o marido a maravilha da sua experiência sexual com uma mulher. Martin se sente chocado e humilhado pela expectativa da sua submissão ao fato.

A briga descamba em uma separação e, em pouco tempo, Tomas se muda para o apartamento de Agathe. Ele permanece semi satisfeito, projetando na mesma balança o que perdeu e ganhou com a nova configuração amorosa. Quando Martin arranja um novo namorado, o protagonista se engaja em tê-lo de volta e, dessa vez, é Agathe que deve se contentar com o ocorrido.

As rusgas que vão se formando nas relações dos três são cristalinas aos olhos dos espectadores, mas completamente alheias ao protagonista, o que torna o filme de Sachs, escrito em conjunto com seu parceiro criativo Mauricio Zacharias, muito mais provocador. Mais do que o drama em si, a dupla está focada em estudar o comportamento de cada personagem, do egocentrismo misturado com carência de uma personalidade dominadora aos motivos que tornam outras pessoas suscetíveis a aceitarem suas demandas cada vez mais delirantes.

Há uma ótima cena em que Tomas almoça com os pais de sua namorada e fica hostil ao ser perguntado sobre suas intenções com ela. Ele responde que pode falar o que quiser, pois existe um espaço amplo entre diálogo e ação, promessas e atitudes. É, ao mesmo tempo, uma colocação compreensível – racional – mas que não abona o fato de que a preocupação dos pais é bastante válida. “Passagens” transita o tempo todo nesse território, procurando oferecer empatia ao trio principal, tratando-os com a devida complexidade.

Narrativamente, há a escolha de suprimir passagens importantes da história. Ao invés de mostrar, algumas inflexões dramáticas são implicadas ou recontadas; do mesmo modo, a câmera nem sempre aponta para a reação do personagem afetado, por vezes divagando no rosto do interlocutor ou, em uma cena específica, focar no torso de Rogowski. É uma opção consciente do diretor, mas com resultados instáveis: em alguns momentos, a intenção fica bem clara, já em outros, é impossível não sentir falta da carga emocional tolhida.

Ainda assim, “Passagens” argumenta muito bem os temas a que se devota, contando com um elenco afiado para transpor as emoções do caos romântico. Outro frescor é a falta de pudor das cenas de sexo, cuja natureza explícita ajuda a delinear bem o desejo de cada um. Mais uma vez, Ira Sachs demonstra que pode haver bastante espaço dramático em narrativas concisas.  

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 31m

Gênero: drama, romance

Direção: Ira Sachs

Elenco: Franz Rogowski, Ben Whishaw, Adèle Exarchopoulos, Erwan Kepoa Falé

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