Por Luciana Ramos
Lee Israel conquistou fama como jornalista, antes de se lançar como biógrafa. No entanto, a sua personalidade irascível, combinada à insistência de tentar escrever um livro sobre uma comediante que caiu no ostracismo, a levou ao colapso financeiro. Demitida do emprego provisório que odiava e sendo evitada pela sua agente, ela sofre com a iminência do despejo e a doença do gato, único ser a quem parece devotada.
Em um lampejo de sorte, no meio de sua pesquisa sobre Fanny Brice, encontra uma carta da atriz que, sem pestanejar, decide roubar e vender em uma loja de raridades. A dona do estabelecimento, embora encantada com a descoberta, ressalva o tom “comum” do material. É então que Lee toma a iniciativa de adulterar o documento, escrevendo uma pequena e irônica nota ao final, adequada à conhecida ousadia da personagem histórica. O sucesso do empreendimento a leva a buscar mais escritos do tipo, mas um raio certeiro não cai duas vezes no mesmo lugar. A escritora decide, então, forjar cartas por completo de personalidades como Noel Coward e Dorothy Parker, atentando a incluir características específicas de cada um na escrita.
Logo, ela torna-se famosa entre os compradores de antiguidades, o que também provoca as suspeitas do FBI, que começa a investigá-la. Mesmo temerosa, ela continua o esquema criminoso, revelando um misto de arrogância excessiva e necessidade financeira. Para isso, conta com a ajuda de Jack Hock (Richard E. Grant), um homem que conheceu brevemente no passado, mas tornou-se seu amigo após tê-lo encontrado em um bar.
O impulso motor da protagonista de “Poderia me Perdoar?” consiste na revelação do seu talento, mesmo que advindo da apropriação do nome de outros. Até então subjugada e descartada, ela, a cada vez que consegue enganar uma pessoa, sente-se orgulhosa da sua capacidade, sem observar a fundo que esta consiste na total anulação da sua identidade. Trata-se, portanto, do relato melancólico de uma existência que, por não ter nada, contenta-se com o pouco, com o ilícito, com a felicidade em ser valorizada – a qualquer custo.
Sem nunca se esquivar do crime que move a ação dramática, o filme de Marianne Heller traça um perfil melancólico da sua protagonista, dedicando-se a entendê-la em toda a sua complexidade. Lee mostra-se uma pessoa extremamente fechada e difícil, características suavizadas apenas quando interage com Jack. Ao mesmo tempo, exprime involuntariamente vulnerabilidade em certos momentos, geralmente quando sai da sua medíocre zona de conforto e é forçada a se expor. Seu amigo trambiqueiro é, aparentemente, o seu oposto: dotado de uma personalidade extravagante e divertida, ele extrapola o papel de alívio cômico, revelando-se igualmente frágil e necessitado – especialmente de afeto.
Baseado no livro que Israel escreveu sobre esta fase de sua vida e adaptado para o cinema por Nicole Holofcener e Jeff Whitty, o roteiro consegue equilibrar o drama pessoal, a excitação do golpe e a comédia, fruto de observações cínicas dos personagens sobre o mundo que os rodeia. Este é muito bem ambientado pela fotografia nova-iorquina de Brandon Trost, enaltecida pela trilha sonora jazzística.
Porém, a força do filme reside no talento dos dois atores principais, que sabem extrair o potencial de cada diálogo. Embora tenha atuado em materiais mais realistas no passado, Melissa McCarthy, após o sucesso de “Madrinhas de Casamento”, moldou sua carreira a uma sucessão de papéis cômicos cada vez mais absurdos que, mesmo diante do olhar cínico da crítica, em geral oferecem bons resultados de bilheteria. Ao assumir este papel, ela se joga em um território mais arriscado e consegue conceder a dose certa de complexidade a Lee. A sua expressão séria casa muito bem com o humor mordaz despejado a cada segundo; ainda assim, ela mostra-se carismática o suficiente para trazer o público para o seu lado.
Tendo construído uma carreira de sucesso em papéis coadjuvantes, Richard E. Grant brilha como Jack, explodindo na tela toda vez que aparece. Sua capacidade de pontuar cada palavra com um cinismo cafajeste leva-nos a torcer por suas aparições – e o sucesso pessoal de seu personagem, que, assim, como a protagonista, segue às margens de Nova York.
É interessante notar a dinâmica dos dois não só pelos contrastes, mas pela similaridade notável: tratam-se de duas pessoas gays acima de cinquenta anos vivendo solitariamente até se encontrarem. Infelizmente, é raro o retrato de uma amizade queer no cinema e o modo orgânico como os dois se relacionam nos faz ansiar por mais.
Propondo-se a recontar a interessante história de uma mulher que revelou talento ao se passar por outros, “Poderia me Perdoar?” traça um complexo panorama de Lee Israel, não se esquivando de suas falhas e latente melancolia. A jornada é intrigante e compensatória, um atestado do talento da diretora Marianne Heller, que vem pavimentando sua ascensão em Hollywood.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 106 min
Gênero: biografia, comédia, drama, crime
Direção: Marianne Heller
Elenco: Melissa McCarthy, Richard E. Grant, Dolly Wells, Ben Falcone
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