Por Luciana Ramos
A autora e diretora Anna Muylaert provoca reflexões sobre determinismo social, disparidades entre classes brasileiras e preconceitos em filme que aborda o relacionamento entre empregadas domésticas e seus patrões.
“Que horas ela volta?” toca na ferida do infortuno ranço ainda existente no Brasil que classifica, distancia e doutrina pessoas a determinados tipos de comportamentos de acordo com a sua classe socioeconômica.
Tais questionamentos são expostos através da figura de Val (Regina Casé), nordestina que largou a sua filha Jéssica (Camila Márdila) aos cuidados de outros para poder lhe prover financeiramente trabalhando como empregada doméstica em uma casa de classe média/alta de São Paulo.
Sua dinâmica de trabalho, muito parecida com a de muitas outras mulheres ao redor do país, extrapola os limites da conduta profissional: Val vive com os seus patrões, mas não pode transgredir o seu espaço de confinamento (as áreas do fundo da casa) a menos que lhe seja solicitado.
Ela é resignada e acredita que cada um já nasce com o seu lugar marcado no mundo. Sente, no entanto, muita culpa por ter sido uma mãe ausente todos esses anos. Por isso, vibra ao saber que Jéssica finalmente decidiu passar uma temporada ao seu lado a fim de se preparar para as provas de Vestibular. Porém, mal Val sabia que sua filha atuaria como um agente do caos, subvertendo o status quo da casa.
A menina é cheia de vida, energética, curiosa e questionadora. Aproveitando-se da hospitalidade do patriarca Carlos (Lourenço Mutarelli), instala-se no espaçoso quarto de hóspedes, relegando a sua mãe ao quartinho dos fundos. Além disso, não compreende e/ou ignora os limites pré-estabelecidos, sentando na mesa com os patrões, tomando o sorvete caro deles, sempre rondando a piscina, entre outras atitudes.
A sua dificuldade em submeter-se às regras afeta de diferentes maneiras os habitantes do ambiente. Enquanto Val segue inconformada com a “falta de educação” de Jéssica, a patroa Bárbara (Karine Teles) passa a expor claramente os seus antes velados preconceitos e acentua as limitações físicas da empregada doméstica e sua filha como forma de manter a distância que considera apropriada.
O longa pauta-se na construção narrativa ácida e inteligente, cheia de sarcasmo e pitadas de bom humor, eficiente de modo geral, mesmo contendo alguns desdobramentos exagerados. Estes, claramente encaixados de forma proposital para inflamar o debate, acabaram enfraquecendo a trama por desviar a atenção do seu tema.
Porém, tais deslizes são facilmente superados frente às excelentes interpretações das atrizes principais. Camila Márdila é bastante eficiente na da complexa Jéssica e consegue expor de forma natural as inquietudes e inconformidade da personagem sem parecer caricata.
Já Regina Casé brilha a cada aparição. A atriz consegue imprimir a fragilidade e conformismo típicos da protagonista com maestria nos mínimos detalhes: trejeitos, inflexões faciais, o modo de falar e a linguagem corporal. Um trabalho primoroso na composição de uma personagem rica por ser tão facilmente identificável.
“Que horas ela volta?” é um soco no estômago do espectador com luvas de pelica. Utilizando da sutileza em uma trama aparentemente simples, expõe a problemática das profissionais que vivem na casa dos patrões mas são tratadas como inferiores por conta da sua ocupação. Além de lhes conferir valor e força, através da jornada de Val, o longa vai além e promove a reflexão, que extrapola as salas de cinema. Por todas essas razões, torna-se imperdível.
Ano: 2015
Duração: 112 min
Nacionalidade: Brasil
Gênero: drama
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Josias, Karine Teles
Diretor: Anna Muylaert
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