Por Luciana Ramos

 

As cinebiografias de personalidades renomadas são sempre objetos complicados, pois se propõem a abarcar a vastidão de seus feitos, seus legados e, não obstante, vidas interiores ricas, que expõem e confirmam a complexidade humana. O dilema que perpassa o recorte biográfico e as escolhas estéticas mais adequadas para este inundam “Radioactive” de tal maneira que condenam o filme a perder o seu propósito em meio a uma cacofonia de ideias e temas.  

Seguindo um molde conservador, este opta pela narração cronológica da vida de Marie Curie (Rosamund Pike), perpassando por seus momentos mais marcantes – do casamento com o também cientista Pierre Curie (Sam Riley) à descoberta do polônio e rádio e decorrente reconhecimento internacional. Suas experiências são filtradas por uma existência feminina forte e impositiva (não comum à época), que rejeita teorias limitantes, sejam elas concernentes ao gênero ou à própria ciência. Assim, o seu maior trunfo é a posse de uma mente pautada pelo pensamento científico – o interesse pela descoberta do que é real, factual, provável.

Essa curiosidade move a protagonista a passar quatro anos desmembrando uma pedra – com ajuda do marido e os meios financeiros que ele, um homem, consegue – até encontrar um elemento central de caráter pouco previsível e poderoso (como ela): o rádio. A difusão da radioatividade transforma o entendimento científico até o momento e concede prestígio ao casal, mas Marie é relegada aos estudos e cuidados com as filhas, enquanto Pierre é laureado com prêmios internacionais.

O descompasso do tratamento entre os dois é apenas um dos aspectos-chaves das inúmeras discussões propostas no longa de Marjane Satrapi. Ao desafiar convenções e optar por uma vida livre e autêntica, Marie Curie sofreu com ampla resistência social, potencializada após suspeitas de que o novo elemento químico poderia ser prejudicial à saúde. Assim, como tantos personagens históricos, a cientista polonesa e naturalizada francesa foi reconhecida pelo seu feito para, mais tarde, ser rechaçada pelo mesmo, um movimento que depõe sobre as forças obscurantistas que rodeiam as sociedades através dos tempos – afinal, possivelmente as pessoas que se prostraram diante de sua casa com dizeres antissemitistas foram as mesmas que correram para comprar pasta de dente radioativa e outras invencionices sem comprovação científica anos antes.

Esse ponto da trama, embora pontuado de maneira superficial e rápida, é o que mais dialoga com a sociedade contemporânea, que parece ter se transformado em um campo de batalha a céu aberto entre ciência e negacionismo, travestido de conservadorismos social.

Os debates oscilantes apresentados na jornada cinematográfica de Curie são complementados pela ousada tentativa de estabelecimento dos paralelos entre descoberta e seus inúmeros usos, dos tratamentos de vários tipos de câncer à criação da bomba atômica. Esses adendos, no entanto, parecem descasados do restante da narrativa, chamando a atenção para a ineficácia da sua aplicação. A confusão de propostas e ideias atinge o seu ápice no terceiro ato, quando o roteiro parece tão confuso quanto a sua protagonista, conduzindo-a a caminhos escusos e infrutíferos. Não se pode, no entanto, apontar apenas para os furos da história, visto que a estética sofre igual oscilação.

O filme começa com um tratamento de imagem interessantíssimo, super granulado e com bordas escuras, como se imitasse os primeiros filetes de película ou a visão de um microscópio, mas que, aos poucos, é substituído pelo formalismo. No entanto, em alguns momentos específicos, a diretora permite a inserção de sequências de sonhos surrealistas ou a invasão do verde menta radioativo na visão de Marie, mas a falta de consistência do emprego desses artifícios visuais denuncia uma mediocridade não desejada.

É curioso pensar na relação entre este filme e obras anteriores de Satrapi, como o belíssimo “Frango com Ameixas”, com quem possui inúmeras similaridades visuais, mas uma diferença importante: no último, a estranheza é sistematicamente aplicada e embebe a narrativa com um tom lúdico e autoral. O que parece faltar aqui, embora não se possa afirmar veementemente, é a liberdade criativa (e independente de estúdios) da diretora em imprimir a sua marca, em tomar para si a história de uma mulher notável e ir além de uma reconstrução biográfica romantizada, realmente ponderando sobre a marca que ela deixou no mundo.

Equilibrando-se entre dois eixos tão extremos, o formalismo e a autoralidade, “Radioactive” mostra-se regular e decepcionante, aquém tanto do talento de Satrapi quanto da excepcionalidade de Marie Curie, que merecia uma cinebiografia mais potente. Como alento, há a intepretação sensível e humana de Rosamund Pike, que brilha mesmo quando o material não está à altura do seu talento.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 109 min

Gênero: drama, biografia, romance

Direção: Marjane Satrapi

Elenco: Rosamund Pike, Sam Riley, Yvette Feur, Anya Taylor-Joy

Avaliação do Filme

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