Por Luciana Ramos

Dizer que “Roma” foi o filme mais esperado do ano não é nenhum exagero. O projeto marca uma mudança no investimento de conteúdos da Netflix, que se lançou à tarefa de atrair grandes nomes do entretenimento – como Paul Greengrass e Martin Scorsese – para sua plataforma sob a promessa de financiar os seus desejos através da combinação de pouca interferência artística e grande subsídio financeiro.

O objetivo que move a iniciativa é forçar o reconhecimento dos veículos tradicionais de Hollywood, representado pelos estúdios, cadeias de cinemas e associações de profissionais, do poderio da plataforma. Em última instância, representa a sua coroação com a conquista de Óscares nas categorias principais onde, até o momento, tem sido amplamente ignorado.

Para Alfonso Cuarón, o filme representa um retorno a um cinema mais autoral após projetos grandiosos, como “Gravidade” – o superlativo não se refere aos enquadramentos e movimentações de câmera, mas ao tipo de narrativa escolhida. Esta deriva-se do seu questionamento sobre sua criação privilegiada no México, deslocando o seu olhar para observação do contexto familiar e social a partir da visão (permeada por suas lembranças) da babá que o ajudou a criar.

O teor profundamente autoral da obra tornava-a difícil de ser plenamente abarcada por estúdios, que, devido à concorrência de veículos de streaming, sofre com debandadas das salas de cinema e, assim, preferem fazer apostas mais seguras – e, portanto, genéricas, moldadas em clichês. Assim, curiosamente, os interesses da Netflix deram vazão à criação de um filme íntimo, que, caso bem-sucedido, abre as portas para a retomada de um cinema menos contaminado, mais atrelado às expectativas pessoais dos diretores.

“Roma” cumpre a sua promessa fílmica de encantar, sabendo combinar uma detalhada recriação cênica de um período histórico, pontuada por uma câmera que passeia e contextualiza os ambientes, com a humanidade da protagonista. O filme abre com o chão da entrada/garagem da casa sendo lavado, um hábito que faz parte da rotina de Cleo (Yalitza Aparicio), que se divide entre as funções de limpeza e cuidado com as quatro crianças da casa onde trabalha.

A vida da família em questão é estritamente mostrada através dos seus olhos, que captam pequenas emoções de cada membro entre o cumprimento de suas atividades. É sua a responsabilidade de limpar as fezes do cachorro, apagar todas as luzes, botar as crianças para dormir e acordar. Dedicando-se a explorar o caráter social da sua relação com os demais, a câmera de Cuarón (que também atua como diretor de fotografia, além de roteirista e editor) mantém certa distância, denunciando o seu deslocamento, expondo, assim, a complexidade de uma relação formalmente trabalhista que extrapola estas funções por conter, invariavelmente, um forte viés emocional.

Este contraponto é perfeitamente citado em uma cena, onde toda a família assiste a um filme de comédia. Cleo, assim como os outros, tem sua atenção voltada para a televisão. Ao notar, sua patroa a manda fazer um chá para o marido, uma forma sutil de afastá-la do ambiente. Os filhos, ainda incapazes de enxergar a situação com estes olhos, protestam, pois querem a sua companhia, vendo-a como alguém que amam, que lhes oferece carinho constante.

Esta construção narrativa sutil permeia toda a trama, que explora os problemas individuais da protagonista, assim como os da família em que trabalha. Pessoalmente, ela lida com a ingenuidade e as consequências do seu envolvimento com Fermín (Jorge Antonio Guerrero), decepção que vê espelhada no desmoronamento da Sra. Sofía (Marina de Tavira). Ao entremear as vivências das duas, o diretor monta um panorama de abandono parental, um perfil masculino que se isenta de responsabilidades e trata as mulheres como seres facilmente descartáveis, retrato pungente que se torna ainda mais forte ao explorar a resiliência das personagens femininas.

A proposta de um olhar crítico sobre o passado é traduzida por Cuarón pela ausência de cor. Ao contrário da maioria dos filmes recentes em preto e branco, que contrastam os dois tons a fim de criar um efeito visual, ele prefere trabalhar nas gradações de cinza, uma concepção estética mais crua. Os já citados enquadramentos, afastados da sua personagem principal, realizam o trabalho de ambientá-la no contexto; porém, se traduzem em uma construção imagética racional, pouco apelativa, que, assim, provocam um maior distanciamento não só de Cleo em relação à família, mas também em relação ao espectador.

Isto é suavizado no terceiro ato, quando a narrativa engrena em uma crescente tensão, permanecida até o final. É neste momento, também, que o delineamento social até então ensaiado se torna mais explícito, contextualização que, por sua vez, valoriza dramaticamente a jornada dessas mulheres. Somente nos instantes finais o diretor se rende ao close, mostrando o rosto de Yalitza Aparicio, que emana ao mesmo tempo força e vulnerabilidade, uma escolha talvez tardia, que elevaria a conexão emocional se adotada com maior frequência.

De todo modo, “Roma” mostra-se eficiente na construção dos seus temas, expostos com precisão pelas mãos de Cuarón – que reafirma seu talento como diretor com a produção. Do ponto de vista comercial, revela um salto qualitativo para a Netflix, que, com este filme, pode clamar ser detentora de “cinema” em seu grau mais elevado, firmando-se como uma plataforma de consumo capaz de ir além de longas formulaicos, baseados em algoritmos.

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 135 min

Gênero: drama

Diretor: Alfonso Cuarón

Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Veronica García, Nancy García García, Jorge Antonio Gerrero

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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