Por Luciana Ramos
A jovem Tish (Kiki Layne), de 19 anos, descobre estar grávida de Fonny (Stephan James). A surpresa marca o início da vida a dois, embora eles se conheçam desde crianças. A notícia provoca sentimentos ambíguos, já que ele se encontra preso, acusado erroneamente de estupro. A iminência de uma nova vida, portanto, se confunde com a luta dos familiares do casal em garantir a sua liberdade.
A premissa do aclamado livro do escritor James Baldwin disseca o racismo e os seus instrumentos coercitivos (no caso, o sistema prisional) por meio do amor. A adaptação cinematográfica de Barry Jenkins, ganhador do Oscar de Melhor Filme por “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, segue esta construção, usando a voz (e sensibilidade) de Tish para narrar os acontecimentos, misturados nas suas lembranças.
Primeiro, é apresentado o caso ao espectador, permeado pela convicção da narradora da inocência do seu namorado. O desenrolar dos fatos comprova sua teoria, explicando como Vitoria (Emily Rios), uma mulher porto-riquenha que vive do outro lado da cidade, foi estuprada na porta de casa à noite e não conseguiu ver direito o seu agressor. Ela então foi orientada pelo policial do caso (Ed Skrein) a acusar Fonny, que estava, no momento do crime, na companhia de Tish e seu amigo Daniel (Bryan Tyree Henry). Esta sugestão, por sua vez, não vem do acaso, já que o oficial se encontrava lívido por uma altercação anterior com o rapaz.
O testemunho causa a prisão de Fonny, que vê seu julgamento postergado diversas vezes. A pulsante injustiça que permeia o caso descrito no filme explica o posicionamento de Baldwin – e, consequentemente, de Jenkins – sobre o modo como o racismo contamina todo o funcionamento do sistema judicial, focando no sofrimento causado dos familiares dos envolvidos, marcados para sempre pela tragédia.
Em “Se a Rua Beale Falasse”, o momento mais impactante desta argumentação não envolve diretamente o casal apaixonado, mas Daniel, que descreve fragilmente a sua experiência quando encarcerado. Esta cena é potencializada pelo talento de Bryan Tyree Henry, que a retrata com imensa vulnerabilidade.
Navegando pelo campo das memórias, Tish contrapõe o sofrimento à magnitude do amor que sente, o que a leva a enfrentar tudo com um semblante esperançoso. Seu olhar observador consegue distinguir e pontuar os diferentes mecanismos de respostas encontrados por sua mãe (Regina King), irmã (Teyonah Parris), pai (Colman Domingo), sogro (Michael Beach) e sogra (Aunjanue Ellis) diante do ocorrido. É capaz também de compreender e apresentar as diferentes nuances do preconceito, desde a mais flagrante (envolvendo o policial) às disfarçadas, como a objetificação que sofre no ambiente de trabalho – e que observa ser distinto do tratamento concedido às colegas brancas.
Atendo-se às suas impressões dos fatos, o roteiro escrito também por Jenkins mostra-se tematicamente robusto e sabe explorar o que há de mais refinado e lúdico do texto de Baldwin nas narrações em off. Imageticamente, reproduz o estilo adotado em seu filme anterior, contrapondo passagens realistas e secas com outras, embebidas pelo romantismo, pontuadas por movimentos de câmera lânguidos e closes nos rostos dos personagens. As imagens são complementadas e enaltecidas pela belíssima trilha sonora composta com instrumentos de corda por Nicholas Britell, um dos pontos altos da produção.
Embora seja uma virtude, a delicadeza do tratamento do tema também acaba depondo contra a obra que, ao optar por se esquivar ou passar rapidamente por pontos importantes, acaba perdendo o impacto. A isso, soma-se a lentidão do seu desenrolar, proposital, de fato, mas que ameniza o engajamento do espectador.
Em contraponto, há o talento do elenco: a troca gradual da inocência pela força de superação da protagonista, tão bem pontuada pelo rosto de Kiki Layne; as marcas de sofrimento e melancolia de Stephan James e Bryan Tyree Henry; a generosidade observada nas expressões gentis de Regina King, que em pouco tempo de tela consegue transparecer a complexidade do seu amor como mãe.
“Se a Rua Beale Falasse” é um retrato intimista, romântico, melancólico e também cruel do modo como o preconceito racial contamina toda a estrutura social. A decorrente ineficiência do sistema é, inclusive, bem explorada na curta aparição de Vitoria que, incerta de sua acusação, tem o seu senso de justiça negado – ciente que a breve e aparente satisfação pela conclusão do caso é supérflua e insatisfatória, que a dor que sente não foi apaziguada; pelo contrário, a assombrará ainda mais. Como bem pontuado na história de Tish e Fonny, o racismo afeta a tudo e todos que toca.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 119 min
Gênero: crime, drama, romance
Diretor: Barry Jenkins
Elenco: Kiki Layne, Stephan James, Regina King, Bryan Tyree Henry, Diego Luna, Ed Skrein, Colman Domingo
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