Por Luciana Ramos

 

Joe Gardner (voz de Jamie Foxx) é um músico frustrado que se contenta com o emprego de professor interino em uma escola secundária, tendo faniquitos esporádicos com a desafinação dos alunos – com exceção da brilhante Connie (voz de Cora Champommier), que sofre bullying justamente por ter talento.

Sua vida parecia ser um loop infinito de uma rotina solitária até que, no mesmo dia, ele recebe duas ofertas bem distintas: a promoção para um emprego regular e a oferta para tocar com uma das lendas do Jazz, Dorothea Williams (voz de Angela Bassett). Ele não titubeia em agarrar seu sonho – para desespero da mãe, obcecada pela sua segurança financeira – mas o destino estava prestes a lhe pregar uma peça e, quando menos esperava, ele caiu em um bueiro e foi parar em uma esteira para o além.

Seu absoluto desespero, proveniente da convicção de que a hora da sua morte não poderia ter vindo em momento pior, o leva a fugir, e ele acaba dando um jeito de parar no cenário oposto. Chamado de “pré-vida”, este abarca almas em processo de aquisição de personalidade, gostos e paixões que desembarcarão na Terra assim que estiverem completas. Joe vê no lugar a oportunidade de voltar ao seu corpo mas, para isso, firma um pacto com a teimosa alma 22 (voz de Tina Fey), que se recusa a encarnar: ele apresenta a vida sob uma nova perspectiva e, quando ela desenvolver uma ideia de propósito ou gosto por viver, o oferece seu passe para a Terra.

O tempo curto – ele tem menos de um dia para recuperar o corpo e se apresentar com Williams de modo a não perder o novo emprego – torna toda a jornada mais interessante, mas “Soul” vai muito além da narrativa clichê baseada em uma corrida com obstáculos vide que, neste roteiro, o maior empecilho para a vida de Joe é ele mesmo: sua paixão por Jazz é tamanha que ele obliterou os demais aspectos da sua existência, sendo incapaz de notar a beleza escondida nas flores, gentilezas e outras pequenezas do dia-a-dia.

Conforme o filme nos mostra, existe um limite tênue entre paixão e obsessão e a mesma atividade capaz de elevar o espírito e conferir uma profunda catarse pode aprisionar a mais brilhante alma, submetendo-a ao definhamento. Afinal, viver vai além de um emprego, uma vocação ou um relacionamento, mas constrói-se na miríade de experiências e aprendizados coletados pelo caminho, perspectiva que o protagonista teimosamente ignora durante a sua jornada.

Neste ponto “Soul” apresenta um importante diferencial dos demais filmes da Pixar: ao insistir na cegueira do seu personagem, que repete os mesmos erros a exaustão, o filme desvencilha-se da jornada de transformação comum a filmes infantis, guardando a lição para o último momento. Não obstante, mostra Joe em tons egoístas, capaz de ferir 22 e contaminar o seu processo de descoberta e deslumbramento – sem ao menos notar. Assim, configura-se a mais adulta animação da Pixar, claramente voltada para o público que cresceu vendo os filmes da empresa e hoje, já madura, se vê realizando os mesmos questionamentos explorados pelo filme.

A distinção transcende a narrativa, sendo lindamente explorada na inovadora estética do longa. Enquanto as ruas da Terra recebem as demarcações de linhas comumente adotadas, os cenários do além são preenchidos por texturas translúcidas que se sobrepõem em uma construção visualmente única. Alguns personagens, como os coordenadores do lugar, ganham apenas finos contornos e leve preenchimento de cor, justapondo-se ao fundo; outros, como as almas, possuem formato arredondado e preenchimento mais claro, mas possuem contornos levemente embaçados, que os mesclam ao local. Há, ainda, o uso abundante da cor preta (não comum em filmes infantis) como pano de fundo de alguns cenários – sem contar os grafismos em P&B – que tornam a produção audaciosa e extremamente interessante.

Ao se propor a discutir conceitos complexos como as almas – seus propósitos, seus caminhos, suas paixões e limitações – sem se resvalar em ferramentas que facilitam a absorção da obra, como piadas e apelos afetivos, Peter Docter e Kemp Powers realizam um filme excepcional e, sim, extremamente gratificante. Deve-se destacar, no entanto, que a catarse típica de obras da Pixar, proveniente da conexão emocional, é substituída por uma apreciação mais racional e reflexiva, o que pode incomodar alguns fãs mais devotos ao molde clássico da empresa.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 100 min

Gênero: aventura, comédia, drama

Direção: Peter Docter, Kemp Powers

Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Graham Norton, Alice Braga, Questlove, Angela Bassett

Avaliação do Filme

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