Por Felipe Galeno

 

Há certos eventos na história que, de tão específicos, parecem ter sido escritos por um criativo autor de ficção. O grande encontro entre quatro importantes personalidades, que aconteceu em Miami no dia 25 de fevereiro de 1964, é um desses. Em uma só noite no hotel Hampton House, o líder ativista Malcolm X, o cantor Sam Cooke, o jogador de futebol americano Jim Brown e o pugilista Muhammad Ali se encontraram e a mística em torno desse momento inspirou, em 2013, uma peça de teatro que, por sua vez, serviu de base para o longa “Uma Noite em Miami…”, lançamento do Amazon Prime e um dos filmes mais aclamados da temporada.

Quem fica com o cargo de transformar o texto teatral em roteiro cinematográfico é o próprio autor da peça, o dramaturgo Kemp Powers. Sua obra é um relato fictício; não se tem muita ideia sobre como foi, de fato, o contato entre esses quatro ícones afro-americanos, sendo o seu trabalho uma reimaginação do evento que se assume como tal desde o princípio. A direção fica por conta de Regina King, atriz vencedora do Oscar, em seu primeiro trabalho como diretora de longa-metragem de ficção.

A tarefa de King e Powers – fazer cinema partindo de uma peça –  não é das mais fáceis e o filme já começa evidenciando algumas das fragilidades pelas quais a obra passa na tentativa de achar um dinamismo mais cinematográfico. As quatro cenas iniciais, cada uma apresentando um dos personagens principais a partir de algum acontecimento anterior à noite do título, são claras tentativas de fugir do formato de ‘longo diálogo’ que caracteriza a obra teatral, mas, ao mesmo tempo, são sequências genéricas demais para fisgar o espectador, uma contextualização que insinua uma cinebiografia convencional. É como se o filme demorasse um pouco para se encontrar, entender o que quer ser, e isso acaba pesando para quem assiste.

É, entretanto, a partir do momento em que as quatro personalidades começam a interagir que o filme começa achar sua identidade. Se há algo que fica claro, da marca dos 30 minutos até o fim da sessão, é que a voz e a força da obra estão no contato entre essas figuras. Mesmo quando a conversa ainda não está em seus momentos mais acalorados, já dá para compreender um pouco melhor que as intenções do longa estão mais em colocar certas questões como foco do que em necessariamente ser uma biografia tradicional, apesar de se assemelhar a um trabalho do gênero em certas passagens.

Esses questionamentos ao centro da produção poderiam ser resumidos em uma pergunta geral: qual é a posição do homem negro na América? O desdobramento deste pensamento em inúmeros pontos norteiam a narrativa. Assim, questiona-se qual a posição do estadunidense negro na cultura, na ação social, diante da fé, das demandas midiáticas, das estruturas de opressão, de si mesmos. O filme sabe que não são assuntos novos, mas os trata com vigor e urgência por entender que isso não os torna menos cruciais. Nesse sentido, a presença de artistas negros no comando do projeto faz toda a diferença uma vez que, nas mãos de alguém que não entendesse a dimensão dessas questões, ele poderia perder seu propósito e se resumir a uma cinebiografia banal.

Para lidar com a intensidade dos diálogos, que vão gradativamente abordando os temas de forma mais frontal, o longa aproveita a habilidade de seu elenco. Os quatro atores que dão vida às personalidades compreendem perfeitamente o olhar que o longa lança para esses indivíduos, uma visão imaginativa que os enxerga, ao mesmo tempo, como símbolos e como seres humanos. Kingsley Ben-Adir provavelmente é, dentre os quatro, o que mais tem chances de chamar atenção em premiações graças a  complexa e verdadeira passionalidade centrada com a qual imbui seu Malcolm X. Não significa, porém, que os outros performers fiquem atrás. O Muhammad – aqui, ainda Cassius Clay – de Eli Goree esbanja carisma e jovialidade enquanto Leslie Odom Jr. compreende como ninguém os dilemas e anseios de seu Sam Cooke. Enfim, Aldis Hodge compõe de maneira inteligente um discreto e conciso Jim Brown.

Além das funcionalidades individuais, também são, como esperado, performances que caminham ainda melhor quando juntas. Assim como o roteiro, que só descobre seus temas a partir do coletivo, o trabalho do elenco ganha ainda mais cor em conjunto e a cineasta Regina King percebe isso com naturalidade. Seu trabalho não reinventa a roda e nem tenta, mas encontra com simplicidade a destreza para orquestrar extensas discussões sem cair para a monotonia nem se perder em desatenção. Comparando, por exemplo, com outra adaptação teatral recente, a execução de King é bem mais hábil do que a direção difusa de George C. Wolfe em “A Voz Suprema do Blues”. Ainda é pouco para de fato conhecer os talentos da King diretora, mas é um início despojado e promissor para sua carreira por trás das câmeras.

Quando chegam os momentos finais de “Uma Noite em Miami…” e a câmera volta ao mundo exterior àquele quarto de hotel do marcante encontro, a sensação já não é mais a do estranhamento genérico presente nas cenas iniciais. As questões propostas e ramificadas na tal noite que nomeia o longa impactam toda a forma de enxergar o mundo daqueles personagens, por mais que ainda sejam questões e não respostas. É esse efeito – o que a noite causou nos personagens em 64 – que o filme pretende causar no espectador em 2021.

FICHA TÉCNICA

Ano: 2020

Duração: 114 min

Gênero: drama

Direção: Regina King

Elenco: Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr., Eli Goree

Avaliação do Filme

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