Por Luciana Ramos
O jovem Dick Cheney (Christian Bale), iniciando sua carreira política como assessor do congressista Donald Rumsfeld (Steve Carell), ouve do seu chefe detalhes sobre uma reunião realizada a portas fechadas entre o então presidente Richard Nixon e Henry Kissinger. A decisão tomada por estes dois homens, Rumsfeld explica, mudará os rumos da geopolítica, dado o poderio dos Estados Unidos na configuração internacional.
Diante desta exemplificação de poder, o jovem Dick pergunta sobre valores, sobre o que acreditar, ao que é respondido com risada e escárnio. Essa cena de “Vice” contextualiza a intenção do diretor Adam McKay de estabelecer a relação direta entre os interesses pessoais de políticos influentes com o rumo da humanidade, algo que extrapola – e muito – os limites dos EUA.
O ponto principal desta discussão é o envolvimento do país na Guerra do Iraque sob bases infundadas, um manipulação da expectativa da sociedade com a observação do uso de um território alheio rico em petróleo para ganhos pessoais – no caso, o do vice-presidente da nação, Dick Cheney, que atuou por anos como CEO da Halliburton, empresa petrolífera beneficiada com a queda de Saddam Hussein.
Para chegar a este ponto, no entanto, o diretor teve que fazer um amplo esforço de contextualização, voltando-se para a juventude de Cheney enquanto trabalhador braçal sem grandes expectativas de futuro a fim de acompanhar o crescimento de sua influência na política, além de embasar as características pessoais que promoveram sua ascensão, como o raciocínio lógico, a observação e a extrema paciência, no sentido de saber esperar o momento certo para usar as cartas na manga.
Este tipo de abordagem torna este filme ainda mais ambicioso do que o antecessor de McKay, “A Grande Aposta”, que tinha a tarefa difícil de explicar a crise financeira deflagrada em 2008. Aqui, o uso de uma narrativa completa (e complexa) se faz necessária dada ao desconhecimento público da atuação do vice-presidente de George W. Bush (Sam Rockwell), pouco explorado na mídia pela sua capacidade camaleônica de permanecer nos bastidores comandando a ação como um bom marionetista.
O caminho trilhado por ele é longo e envolve diversos personagens diferentes que, em sua maioria, são incluídos no roteiro escrito também por McKay. Para tornar toda esta vasta informação palatável, ele usa recursos adotados na sua obra anterior, como a montagem das cenas ficcionais com trechos documentais das guerras do Iraque e Afeganistão, pedaços jornalísticos que contextualizam a reação da população americana diante dos acontecimentos, além de trechos cômicos, como a inclusão da famosa campanha publicitária da Busweiser nos anos 2000, “What’s Up”, que explicita a alienação geral diante do caos político instalado pelas mãos do vice.
Neste sentido, há ainda a inclusão de um narrador que possui ligações distantes com o objeto de estudo e que apresenta didaticamente os fatos. Este não é só mais uma ferramenta de contextualização, mas simboliza o impacto que essa série de decisões equivocadas do alto escalão do governo provocou no “homem comum”. Ainda que seja um recurso útil, Kurt (Jesse Plemons) mantém-se alheio ao resto da narrativa, causando um sentimento de não-pertencimento que afeta negativamente a experiência cinematográfica.
Diante de um conteúdo robusto como este, que, por vezes, parece oprimir o espectador (mais um efeito colateral indesejado), o diretor opta por quebrar a tensão em determinados momentos da trama com o humor, seja este derivado de dizeres irônicos dos personagens, da reiteração do uso do problema cardíaco do protagonista como alívio cômico ou o estranhamento da declamação de Shakespeare em um momento crucial. De maneira mais flagrante adota-se o deboche, como no momento em que simula o término do filme de maneira idílica, o que serve para reforçar a base da sua tese de que o mundo estaria muito melhor caso Cheney não tivesse ocupado (e se aproveitado) de uma posição de destaque no governo Bush.
Apostando na contextualização do seu personagem no mundo familiar, McKay humaniza-o, oferecendo ao espectador um necessário elo de identificação. Este, por sua vez, é quebrado ao final, expondo ainda o quão imoral Dick consegue ser. Além disso, e talvez mais importante para a trama, é a exploração da persona de sua esposa, Lynne (Amy Adams). Apresentando-se como a dama coadjuvante, apoiadora incondicional e representante do lar, ela logo ultrapassa os estereótipos de gênero para se revelar como peça fundamental neste quebra-cabeças de poder, mostrando-se detentora de uma mente afiada movida pela ambição que foi determinante para a carreira de sucesso de seu marido.
Com um roteiro bem embasado e complementado pela adoção de uma montagem criativa, que flerta com o construtivismo, o filme eleva-se por conta do competente elenco, completamente entregue aos seus papéis. O espírito energético e incisivo de Lynne, disfarçado pela sua voz aveludada, cai como uma luva para Amy Adams, que explora esta calculada persona em momentos importantes da ação dramática.
O destaque, no entanto, fica por conta da transformação absurda de Christian Bale e Sam Rockwell nos seus personagens. Este ocupa um plano coadjuvante na trama, mas chama a atenção pela similaridade física e gestual com George W. Bush, algo também notado na forma como Tyer Perry transmutou-se em Colin Powell. Bale, por sua vez, consegue ir a um patamar ainda mais elevado, tornando-se irreconhecível desde a voz ao porte e modo de locomoção de Cheney, um trabalho primoroso que talvez seja o melhor de sua carreira.
Com tantos elementos positivos, “Vice” surpreende por saber destrinchar um assunto tão complexo em blocos palatáveis que, unidos, conseguem oferecer um bruto impacto ao final, estabelecendo, assim, a almejada correlação entre as ações de um único homem ao panorama global da atualidade. Assim, ainda estabelece claramente os perigos do uso da política em benefício próprio e o incalculável sofrimento adjacente.
Por seu caráter ambicioso, por vezes o filme parece pesado, o que o torna mais indicado aos espectadores interessados no assunto, como é o caso do longa antecessor de Adam McKay, “A Grande Aposta”. O diretor, que se afastou das comédias mais escrachadas para abraçar temas políticos e sociais, demonstra imenso talento na sua nova obra, notado pelo nível de controle com que costura uma trama provocadora, intensa e inegavelmente essencial.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 132 min
Gênero: biografia, comédia, drama
Diretor: Adam McKay
Elenco: Christian Bale, Sam Rockwell, Amy Adams, Steve Carell, Allison Pill, Justin Kirk, Jesse Plemons, Tyler Perry
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