Por Luciana Ramos
Durante quase 40 anos de dedicação ao ofício do cinema, Olivier Assayas atuou como escritor e diretor, fazendo o seu nome em filmes que debatem temas atuais ou investigam questões existenciais através da interação de seus personagens: o que eles dizem e o que tentam esconder, mas seus corpos revelam. São, em sua maioria, obras pautadas no diálogo, muito diferentes da sua mais nova produção, “Wasp Network: Rede de Espiões”.
Isso não significa, de nenhum modo, que as conversas neste filme não tenham importância, mas sim que elas contém camadas sobrepostas de interpretação que, aos poucos, revelam um intricado jogo de espionagem. Trata-se da chamada “rede de vespas”, composta por cubanos exilados nos Estados Unidos nos anos 90 que tinham em comum o propósito de se infiltrarem em fundações e alianças anticubanas para desmontá-las.
Este processo decorre do fechamento comercial de Cuba (imposição americana por conta do cunho socialista do governo), o endurecimento das condições de vida da população nativa que sofre, entre outras coisas, com apagões programados e pouca liberdade, e a decorrente fuga em massa de cidadãos cubanos, que buscam nos EUA uma vida mais digna. De dentro do país, criam-se organizações para combater o regime de Fidel Castro. Os objetivos, embora humanitários na superfície, abarcam financiamento ilegal (via tráfico de drogas e outros crimes) e atentados terroristas em pontos turísticos do país latino-americano, uma tentativa clara de sufocar o regime.
Embora contextualize muitíssimo bem as forças de poder em operação na época, tal como suas redes de apoio e contradições, o filme não foca exclusivamente nas ações de espionagem e seus contrapesos, mas nos personagens destas missões, explorando seus sensos de lealdade e os preços que pagaram por suas decisões.
O piloto René Gonzalez (Edgar Ramirez) é um deles. Embora ame a mulher Olga (Penelope Cruz) e a filha, ele hesita em largá-las para fugir até Miami, onde começa a trabalhar com José Basulto (Leonardo Sbaraglia), homem influente que coordena esforços anticastristas. Nas oportunidades em que suas convicções são desafiadas ele aumenta sua aposta na lealdade à Cuba; quando observa condutas erradas de colegas, as rechaça, como faz com Juan Pablo Roque (Wagner Moura), cujo estilo de vida se mostra incoerente com seu salário oficial. Também integrante da mesma rede, seu comportamento é mais ostensivo e individualista, como demonstra no relacionamento com Ana Margarita (Ana de Armas). Tratando-a ora com amorosidade, ora com o descaso típico de quem tem segredos a esconder, ele vê a esposa como um troféu, mais um atributo na composição da aparência que deseja passar.
O terceiro integrante do grupo é Manuel Vilamontez/Gerardo Hernandez (Gael Garcia Bernal) que, embora pareça mais cordial e afável, visto o seu papel de coordenador das missões, é igualmente cruel no tratamento da companheira, representando um tipo de idealismo que também exprime uma cegueira desmedida e dependente de uma série de sacrifícios pessoais.
Condensando os temas e personagens, chega-se, portanto, ao mote de “Wasp Network: Rede de Espiões”. Embora trate com excessivo idealismo um momento histórico intrigante e complicado, o filme acerta bastante nos momentos em que se desvencilha da politização (nem sempre ambivalente e, por isso, mais superficial do que o desejado) e foca nos seus agentes: na humanidade por trás de cada ação, no destino de cada pessoa e no modo como encaram suas escolhas.
Neste contexto, Assayas sabe muito bem contextualizar o modo com que as mulheres destratadas por seus companheiros, sendo conquistadas ou afastadas mediante os interesses destes homens. Em todo o caso, são elas que pagam pelas escolhas dos maridos, que sofrem com o escárnio da imprensa ou são relegadas à condições quase desumanas de subsistência, a quem cabe a criação dos filhos ou, no caso da mulher de Manuel, não podem se atrever a sonhar em conceber, pois isto seria um empecilho na missão dele.
Este sentimento é captado e potencializado de maneira magistral por Penelope Cruz, de longe a melhor coisa do longa. A sua atuação é brilhante pois ela sabe sintetizar o sentimento de casa cena no seu olhar e exprimir a determinação de quem nunca desiste de lutar pela sua família embora, muitas vezes, o faça sozinha.
Os planos rápidos e alternados das passagens de ação, condensados às conversas cujos subtextos adicionam novas camadas de compreensão marcam uma grande digressão do corpo de trabalho de Olivier Assayas, mas ele demonstra domínio narrativo e apuro estético. Ainda que nem sempre saiba balancear seus argumentos, “Wasp Network: Rede de Espiões” explora um episódio fascinante do relacionamento entre Cuba e Estados Unidos e potencializa sua narrativa ao focar no fator humano por trás de cada missão.
*Filme assistido como parte da cobertura da 43ª Mostra de Cinema Internacional de SP
Ficha Técnica
Ano: 2020
Duração: 127 min
Gênero: crime, suspense, espionagem, drama
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Gael Garcia Bernal, Wagner Moura, Edgar Ramirez, Penelope Cruz, Leonardo Sbaraglia, Ana de Armas