Por Marina Lordelo

 

Andrei Tarkovsky foi um cineasta russo de projeção inquestionável para a história do cinema contemporâneo – sempre preocupado com forma, estilo e posicionamento ideológico, o diretor sedimentou o seu espaço neste universo como um dos artistas mais eficientes em trabalhar questões sensíveis e necessárias de maneira poética. Assim, seu primeiro longa-metragem, “A Infância de Ivan” (1962), não traduz em seu título o amargor que um jovem garoto soviético vive através de sua orfandade durante a segunda guerra mundial.

Baseado no conto “Ivan” de Bogomolov, Tarkovsky justifica a necessidade da adaptação pela profundidade dos personagens literários, bem como a indivisibilidade da obra como um todo. Não obstante, em suas obras seguintes o diretor soviético tenta ser habilidoso com a noção (ou a falta de) do tempo na narrativa. Na obra em questão, transita entre momentos oníricos e realísticos para apresentar Ivan Bondarev (Nikolay Burlyaev) ao espectador, que é projetado através de uma justaposição de planos holandeses (onde a linha do horizonte está subvertida), associados a planos gerais que distanciam e isolam o protagonista.

 

 

E se o efeito de solitude e vazio é atendido com destreza, quando a câmera enfim se aproxima em close de Ivan o personagem mostra toda força, rigidez e dureza necessários a uma vítima de guerra que precisa se manter viva. Em contraste a “Vá e Veja” (1985), do também soviético Klimov, que apresenta crianças em absoluto estado de vulnerabilidade emocional frente aos estragos da guerra, Tarkovsky assume uma sequência de planos em uma ambientação quase claustrofóbica como um diferencial em relação ao outro diretor: trabalha com muitos diálogos e uma profundidade de campo grandiosa, onde todo entorno do protagonista está em foco, tudo ali é necessário.

Preto e branco e com uma luz dura e bem marcada, o soviético se mantém seco e minucioso em seu estilo narrativo, até porque não há cenas usuais de guerra ou ataques violentos, conforme a produção hollywoodiana estava interessada em retratar. Neste sentido, reflete-se na tela uma escolha (guiada pelo conto de Bogomolov) em não retratar atos de bravura, focado no intervalo entre missões de guerra e em uma possível oportunidade de combater a chegada dos poloneses – através das preciosas informações do espião russo de doze anos, Ivan.

É desta forma que Tarkovsky questiona a infância de seu protagonista, apresentando sua personalidade fragilizada e deslocada de seu tempo – um trauma absolutamente legítimo e inquestionável para uma criança dentro deste contexto. Há drama suficiente em acompanhar a infância roubada por um dilema social e político e não há necessidade alguma em assumir grandes sequências épicas que supostamente justificariam a temática da obra.

 

 

Tarkovsky é habilidoso em transpor o conto literário para a tela, em descrever eventos traumáticos e igualmente sensível em representar a figura feminina hostilizada durante a guerra. Distanciada das decisões estratégicas e coagida pelo capitão do pelotão, a enfermeira Masha (Valentina Malyavina) é mais um elemento narrativo que reforça a angústia provocada pela obra – e com uma fotografia preciosa de Vadim Yusov, o espectador desfruta do que viria a ser uma das cenas de abuso mais intensas do cinema contemporâneo, ainda que a vítima consiga se desvencilhar do seu algoz.

Uma apresentação poética de Tarkovsky ao cinema, “A Infância de Ivan” tornou-se uma obra necessária para se compreender a guerra em seu âmbito mais devastador, o psicológico. Além de um primor estético, enquadramentos preciosos, movimentação em uma espécie de ballet de câmeras e uma atuação eficiente  do jovem Nikolay Burlyaev, o filme é sensível e hábil em contar o pedaço de uma história que expõe os dramas de tantas outras vítimas da guerra.  

 

Pôster

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficha Técnica

Ano: 1962

Duração: 95 min

Gênero: drama

Direção: Andrei Tarkovsky

 

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

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