A indústria cinematográfica sustenta-se em três pilares básicos – produção, distribuição e exibição – e, no ano de 2020, dois destes foram subitamente interrompidos, enquanto o terceiro enfrentou uma crise só antes vista nos anos 40, quando Hollywood sofreu um baque judicial que culminou no fim da sua “era de ouro”.

O ano, no entanto, começou muito animador com a premiação de “Parasita” no Oscar, sendo o primeiro filme de língua estrangeira a ganhar na categoria principal. Sua vitória é o resultado de uma mudança significativa no corpo de votantes, que empurra a premiação para uma (necessária) renovação. Porém, em pouquíssimo tempo, o foco mundial mudaria drasticamente, já que o poder de espalhamento do novo Coronavírus desafiou as medidas sanitárias adotadas pelos países do sudeste asiático e penetrou nos demais territórios, levando a OMS a categorizar a situação como uma pandemia. O aumento expressivo de casos em países europeus foi forçando Alemanha, Itália, Espanha e outros a adotarem medidas extremas, como o lockdown, medida que logo seria estendida aos Estados Unidos.

 

PRODUÇÃO

A suspensão de atividades econômicas viria a provocar um impacto profundo no audiovisual, já que os seus três pilares provêm da colaboração de centenas de profissionais. Sem possibilidade de aglomeração, as produções de filmes e séries foram subitamente interrompidas em caráter mundial, jogando extrema incerteza sobre a resiliência financeira do setor. Enquanto alguns diretores optaram por experimentar novas possibilidades de filmagens em isolamento – caso do média-metragem “A Voz Humana”, de Pedro Almodóvar, do longa “Malcom e Marie”, filmado em isolamento, e da produção da Netflix “Feito em Casa” – a maioria esperava por condições melhores para retomada das filmagens.

Feito em Casa

No processo, inúmeros filmes e séries foram cancelados (para desagrado dos fãs) em um rearranjo de contas para minimizar os danos. Em um momento mais controlado da pandemia, grandes produções, como “Matrix 4”, “Missão: Impossível 7” e outros anunciaram o retorno às filmagens com a adoção de protocolos rígidos de segurança. Mesmo assim, foram contabilizados casos de Covid-19 entre membros de algumas equipes, levando à súbita interrupção da produção de “The Batman” e “Don’t Worry, Darling” (novo filme de Olivia Wilde), entre outros casos pontuais. Não obstante, um áudio vazado recentemente revelou um Tom Cruise revoltado brigando com sua equipe após ver algumas pessoas se aglomerando. Como ele mesmo pontuou, a produção de grandes filmes envolve negociações com seguradoras, que não só aumentaram seus preços nos últimos meses como exigem um padrão sanitário ímpar para cobrir eventuais problemas. Sendo assim, gravar em tempos tão incertos exige um comprometimento sem igual de todos os envolvidos.

Cabe dizer que no Brasil a situação (já caótica) foi agravada por dois fatores: a falta de repasses ao Fundo Setorial Audiovisual, que atrasou o início das filmagens de inúmeros projetos – problema não resolvido e que impede a realização de muitas obras – e a falta de uma condução séria e enfática do Ministério da Saúde que, sob atual gestão, não parece se preocupar com os efeitos da pandemia. Assim como nos EUA e em outros países, as gravações de filmes, séries e até novelas foram suspensas (fenômeno inédito no último caso) e agora retomadas com regras sanitárias descritas pelos governos municipais e estaduais.

 

DISTRIBUIÇÃO

A segunda perna do tripé audiovisual foi, sem dúvidas, a que mais sofreu transformações em 2020, mas, para entendê-la, deve-se fazer uma breve contextualização.

Desde a consolidação da Netflix como gigante do mercado, estabeleceu-se uma rixa na indústria audiovisual mundial: alguns países, como a França, olham o modelo com maus olhos (exigindo uma janela de 36 meses para exibição de obras originais da empresa no Festival de Cannes, por exemplo); já realizadores consagrados, como Sofia Coppola e Martin Scorsese, abraçaram o streaming como palco de experimentação; as premiações, por sua vez, oscilam no quanto valorizam essas plataformas, sendo o Emmy muito aberto ao modelo e o Oscar extremamente conservador; por último, há um embate claro com as redes de cinemas, ávidas pela sobrevivência.

On the Rocks, de Sofia Coppola

Foi exatamente a necessidade de fechar as salas de exibição por tempo indeterminado que levou os estúdios a buscarem alternativas para suas produções e, assim, passaram a olhar o streaming como lugar de venda dos seus materiais, o que diminuiria perdas em caixa. Assim, houve uma profusão de novos filmes e séries não só na Netflix, como na Amazon Prime e outras, sem contar as plataformas de aluguel e venda, como Apple+ e Google Play (as mais beneficiadas). Em movimento consonante, ocorreu a proliferação de serviços do tipo no Brasil, que viu o lançamento do Belas Artes a la Carte, Filme Filmes e Cinema Virtual, entre outros.

Enquanto o espectador brasileiro se deliciava com a oportunidade de ver lançamentos chegando por aqui mais cedo do que o de costume e, além disso, poder ver filmes antigos que antes não estavam acessíveis (clássicos como “Lawrence da Arábia” também entraram no novo jogo da distribuição), a relação entre estúdios e cadeias de cinemas foi se esgarçando ainda mais, chegando a um ponto importante de tensão com o acordo firmado entre AMC (rede de cinemas americana) e Universal no final de julho.

Este previa a diminuição da janela de exibição para apenas 17 dias, mudando completamente o jogo. Tradicionalmente, um longa estreia nos cinemas e, após sair do catálogo, permanece três meses inacessível até chegar a outra plataforma (primeiro a TV a cabo ou streaming e depois a TV aberta), de forma a criar a vontade do espectador a consumir o conteúdo nas telonas. Porém, o novo acordo entre AMC e Universal não só viola as regras americanas como abre precedente para adoção de modelos similares em várias cadeias de exibição ao redor do mundo, o que deixou os donos destas incomodados por possíveis pressões por parte dos estúdios (vide que eles são a ponta mais frágil da balança de poder).

Já havia, nesta época, o incômodo profundo com o redirecionamento de lançamentos para o streaming (“Soul”, “Bill e Ted 3”) e adiamento de inúmeros blockbusters para 2021 (“Duna”, “007: Sem Tempo Para Morrer”, “Um Lugar Silencioso 2”), que se explica pelo alto investimento das produtoras (e possível baque financeiro) mas, para os cinemas, representa a perda de material capaz de atrair espectadores. Neste sentido, foi organizado no Brasil o Festival de Volta ao Cinema, campanha de marketing que explorava o apelo emocional da experiência de assistir um filme nas telonas, mas que se baseava no relançamento de material antigo para tal e, por isso, fracassou em seu propósito. Ademais, houve um apelo público dos exibidores brasileiros para que materiais nacionais como “O Gogó do Paulinho” não seguissem a onda e fossem lançados direto no streaming – também sem sucesso.

Eis que Christopher Nolan, um entusiasta da projeção tradicional, decidiu lançar “Tenet” nas salas de cinema em apoio as redes e, de início, a Warner alegou que a bilheteria teria sido impressionante, rondando a casa dos 200 milhões de dólares. O entusiasmo das demais empresas levaram-nas a exigir comprovantes para a alegação…o que levou a Warner a admitir ter inflado o número de ingressos vendidos.

Essa vergonha não seria a maior polêmica envolvendo a empresa em 2020, já que ela anunciou no começo de dezembro que todos os seus filmes previstos para 2021 serão lançados concomitantemente nos cinemas e seu serviço de streaming, HBO Max (que ainda não chegou no Brasil), o que faz sentido do ponto de vista mercadológico, já que ainda há muita incerteza sobre a pandemia, mas conseguiu irritar ao mesmo tempo os donos de cinemas e os diretores contratados (como Nolan, Patty Jenkins e Dennis Villeneuve) por não terem sido consultados.

Ademais, esse redirecionamento (imitado pelo Disney com “Raya e o Último Dragão”) abre espaço para um remodelamento profundo da cadeia de distribuição, com foco nos streamings e, portanto, maior pressão financeira nos cinemas.

 

EXIBIÇÃO

Essa área já foi bastante detalhada dado o seu caráter entrelaçado à distribuição, mas ainda cabem três pontos interessantes de discussão.

O primeiro dá-se pela profusão de drive-ins em território nacional, um modelo em quase absoluto desuso há quarenta anos (a única exceção é o Autorama, em atuação permanente na cidade de Brasília). O modelo foi a salvação das empresas de eventos e detentores de equipamentos cinematográficos, como projetores, que se uniram em parcerias com prefeituras (também sedentas por entreter a população reclamona de maneira segura), que entrou com o oferecimento de terrenos para uso temporário. A proibição da exibição de lançamentos pelo medo de pirataria levou à exploração de outros campos que iam de clássicos adorados (“Apocalipse Now”) a sessões de filmes brasileiros (“Música Para Morrer de Amores”) e filmes cult (“Minha Lua de Mel Polonesa”).

Nos primeiros meses, o setor respondeu com entusiasmo com a adesão do público, mas os números foram gradualmente declinando até a sustentabilidade do modelo ser questionada – com exceção do Belas Artes Drive-In, que apostou em sucessos antigos e lotou sessões. Combinou-se a este fator o término do período firmado pela parceria público-privada, que levou ao desmonte das estruturas que hoje, meses depois e com o aumento expressivo do número de casos de Covid-19 no país, fazem falta como opção de entretenimento.

Já no campo das polêmicas ocorreu a chamada “revolta da pipoca”, protagonizada por cinemas no Rio. O episódio deu-se com a reabertura das salas sem autorização para vendas de comidas e bebidas, visto que os ambientes são fechados e o risco sanitário em ficar sem máscaras para se alimentar é alto. Mesmo assim, as redes exibidoras ganharam a batalha e tiveram liberadas suas vendas, que compõem a parcela mais expressiva de lucro.

Esta vitória, no entanto, não foi o suficiente para atrair espectadores: a verdade é que a grande maioria ainda não se sente segura para voltar a frequentar cinemas (sim, notamos a hipocrisia dos bares, praias e restaurantes lotados) e redes tradicionais tiveram que fechar as portas de vez (caso do Cine Joia, RJ), enquanto outras suspenderam as atividades por serem incapazes de cobrirem os custos na situação atual (Belas Artes, SP). Esta, por sinal, realizou um leilão para angariar fundos que pagassem seus funcionários enquanto a Estação Net de Cinema apelou a uma vaquinha online com mesmo objetivo. Em suma, a condição dos cinemas é dramática e deve se arrastar por 2021.

 

CINEMATECA

Nada é tão grave, no entanto, quanto a situação da Cinemateca Brasileira, propositalmente abandonada pelo Governo Federal. É nítido o processo de desmonte da indústria audiovisual brasileira – o rebaixamento de Ministério da Cultura para Secretaria Especial, a troca de autoridades do cargo, a escolha estapafúrdia desses nomes, os entraves de repasses, a troca arbitrária da sede da Ancine – mas o esfacelamento da Cinemateca representa um ponto além, pois a instituição resguarda a memória audiovisual brasileira.

protesto contra o abandono da Cinemateca

A disputa desde o ano passado pelo controle da gestão, batalha “vencida” pelo governo federal levou a interrupção de repasses para seu funcionamento básico. Há ao menos uma sala mofada por infiltração onde filmes, séries, novelas, cartazes e pôsteres definham. Os funcionários não são pagos há meses e tiveram que apelar a uma vaquinha para sobreviver. Diante dos atrasos, a luz foi cortada, pondo riscos não só à preservação das películas (que necessitam de refrigeração) como ao do próprio prédio, sob risco de incêndio.

Em agosto, o secretário Mário Frias assumiu o controle da gestão, mas não fez nada desde então, deixando a memória brasileira se corroer nas paredes da abandonada Cinemateca.

 

FESTIVAIS, PREMIAÇÕES E BLACK LIVES MATTER

Por fim na nossa extensa retrospectiva (visto que 2020 parece ter durado 100 anos), temos a contraposição entre soluções muito diferentes aos empecilhos impostos pela pandemia. Quase todas as premiações tiveram que ser adiadas, mesmo relutantemente (caso do Festival de Cannes) por conta dos sérios riscos impostos à saúde e adotaram modelos online, como o É Tudo Verdade e a Mostra Internacional de Filmes SP. Estas acabaram sendo bastante proveitosas pois aumentaram o escopo de acesso à programação. O sucesso levou os seus organizadores a indicarem que desejam optar por modelos híbridos nos anos seguintes. O Festival de Sundance, importante palco de filmes independentes, já revelou que terá sua nova edição, programada para fevereiro, em formato online, assim como foi Tribecca.

Em desafio, o Festival de Veneza ocorreu presencialmente, mas com número bastante limitado de pessoas, sendo mais um produto de marketing do que de divulgação dos filmes – pouco vistos e, portanto, pouco resenhados. Já o Festival Varilux dividiu-se em duas partes, sendo a primeira online e tendo como proposta revisitar antigos sucessos de outras edições e, em novembro, uma versão presencial com filmes inéditos, que não atraiu tanto público quanto esperado pelos organizadores.

Emmy 2020

Quanto às premiações, além dos adiamentos já previstos, houve a ótima produção do Emmy em formato mesclado, com alguns apresentadores em um estádio (mantendo o distanciamento social) e os demais convidados em casa, participando via zoom. Embora pouco usual, o show, comandado por Jimmy Kimmel, funcionou muito bem e abriu portas para as demais associações copiarem – embora o Oscar afirme que seu evento, previsto para abril, será estritamente presencial.

Em um ano importante de protestos raciais, comandados pelo movimento Black Lives Matter e espalhados por diversos países, o mundo perdeu subitamente o talento de Chadwick Boseman, que tanto fez para a representação das pessoas negras nos cinemas, mas também vimos uma maior profusão de obras representativas e inovadoras, que colocam a questão do racismo sob novos prismas, como foi o caso da série “Lovecraft Country”.

Cabe lembrar também os inúmeros artistas vitimados pela Covid-19 que deixaram o mundo – e especialmente o Brasil, profundamente atingido – mais triste e carente de poesia.

Por último, uma nota de alegria: 2020 foi o ano de consagração de “Bacurau” no exterior, tendo ganhado enorme reconhecimento e inúmeros prêmios, levando o resiliente e talentoso cinema brasileiro além fronteiras.

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