Por Bruno Tavares

 

Esse jargão muita gente já ouviu: “o cinema de um país é tão bom quanto o público que o assiste”. Geralmente ele é usado para rebater as críticas de espectadores brasileiros que não se identificam com as produções nacionais. Acostumados com os títulos americanos ou europeus, muitos ainda torcem o nariz ao ver filmes brazucas em cartaz. Pouco sabem o que estão perdendo. O cinema tupiniquim pós-retomada vem apresentado pérolas audiovisuais de grande valor e que merecem todas as atenções.

Um bom exemplo é “Arábia”, dirigido pelos mineiros João Dumans e Affonso Uchoa. A história do longa é simples: André (Murilo Caliari), um jovem que vive em Ouro Preto, encontra o diário de Cristiano (Aristides de Sousa), um trabalhador fabril que, como o adolescente, também mora no bairro industrial. As condições para o cruzamento das duas narrativas são improváveis. A tia do jovem (Gláucia Vandeveld) é enfermeira e encontra Cristiano estirado no chão em estado catatônico. Após chamar a ambulância, ela pede ao sobrinho que vá até a casa do enfermo e traga algumas roupas. Nesse ínterim, o adolescente descobre o relato secreto e se encanta pela história contida ali.

 

 

Por meio de uma narração em off, as memórias do trabalhador são reveladas, representadas em tela de maneira cuidadosa e delicada. Tal sutileza ao retratar situações cotidianas comuns é um dos grandes trunfos do filme. Em diversos momentos, o público se enxerga na pele do protagonista e se identifica com as dificuldades vividas por ele. Suas motivações são igualmente palpáveis. Ele está sempre em busca de um trabalho digno, uma vida simples e, por isso, visita os recônditos mineiros. Nesse processo, Cristiano acaba fazendo amigos e vivendo amores sem nunca tirar o pé da estrada, o que transforma sua aventura em um road movie de reflexões.

Assim como o protagonista, os diretores demonstram um amplo crescimento. Ao compararmos “Arábia” com “A Vizinhança do Tigre”, primeiro longa de Uchoa com auxílio de Dumans, é possível notar toda a evolução técnica da dupla. Ambas as produções possuem um tom independente, mas o longa mais recente revela um amadurecimento na fotografia, roteiro e produção. As escolhas de ambos também são assertivas quando o assunto é locação. A trama, ambientada em Ouro Preto, sai do eixo Rio-São Paulo e mostra que os dilemas da vida acontecem em todos os lugares do Brasil. Mas a inovação de João e Afonso não para por aí. Mesmo em uma cidade turística, eles evitam a todo custo locações conhecidas do público e mostram apenas o bairro operário, que tira toda a esperança e força vital de seus moradores.

Outro ponto que chama atenção são as atuações. Aristides de Sousa aparece  muito à vontade e encarna Cristiano de maneira convincente. Murilo Caliari e Gláucia Vandeveld também entregam um bom trabalho e sabem conferir densidade a seus personagens. Aqui é interessante notar como o roteiro distancia a figura da mulher. Em todas as suas cenas, ela aparece distante, entrecortada ou em planos laterais, mas nunca de frente. Isso demonstra sua falta de envolvimento emocional com o tutano da história e bagagem de vida carregada pelo funcionário e seu sobrinho.

 

 

Entre tantos acertos, o longa ainda é rico em metáforas, sendo uma delas diretamente relacionada ao título do filme. Assim como as estéreis areias do deserto arábico, a fábrica onde Cristiano trabalha cobre tudo de pó, desde os seus colaboradores até as pessoas que vivem ali perto. A poeira de minério mata sonhos, desejos e alegrias. Essa vida sem cores é bem representada na fotografia. Diferente do amarelo escaldante, a palheta foge da vibratilidade do centro da cidade e concede tons de cinza e marrom às cenas, calibrando ainda mais o clima de apatia e desilusão.

Com um final aberto, a obra deixa em suspenso algumas respostas. Entretanto, o espectador, encantado com a poesia do filme, aceita bem esse fato e toma as decisões que mais lhe agradam para a resolução da narrativa.  Aclamado internacionalmente e muito premiado no Festival de Cinema de Brasília, “Arábia” prova que o cinema brasileiro é capaz de produzir filmes independentes, de gênero e que induzem à uma reflexão profunda sobre a vida. Isso diz muito sobre seus dois jovens diretores, bem como sobre o público que procura tal tipo de arte.

 

Pôster:

 

Ficha Técnica:

Ano: 2018

Duração: 97 min

Gênero: Drama

Dirção: João Dumans e Affonso Uchoa

Elenco: Aristides de Sousa, Murilo Caliari e Gláucia Vandeveld

 

Trailer

 

 

 

Imagens

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