Por Murillo Trevisan

 

Em 1986, o quadro editorial da DC decidiu que seus heróis haviam se tornado datados. A ordem era uma maciça reforma e o ponto inicial seriam os três mais populares e importantes personagens: Superman, Mulher-Maravilha e Batman. Os escritores e artistas designados para a tarefa tinham ideias claras sobre como atualizar os dois primeiros, mas Batman era um problema, pois era perfeito como estava.

A origem que Bob Kane e Bill Finger tinham criado, em 1939, continha uma clara explicação de como e por que o Homem-Morcego veio a existir, as razões para sua obsessiva cruzada e, talvez o mais importante, como o herói refletiu medos, frustrações e esperanças de um público leitor que lutava com a realidade da vida urbana do século vinte. Assim, os editores da DC decidiram que a sua origem não seria alterada, mas passaria por um refinamento, recebendo uma dose de profundidade e, assim, delineando um contexto mais amplo e atual.

Algo semelhante ocorreu nas adaptações para as telonas em 1989, quando Tim Burton (“Edward Mãos de Tesoura”) trouxe à vida sua perspectiva gótica do imperfeito herói. Posteriormente, o personagem caiu nas mãos de Joel Schumacher, que já não teve o mesmo cuidado e o transformou em uma grande galhofa. O personagem passou também pelas mãos perfeitamente técnicas de Christopher Nolan na trilogia “The Dark Knight” e pela conturbada proposta de Zack Snyder até a Warner despertar para a possibilidade de mais uma adaptação cinematográfica após o sucesso do stand alone “Coringa”.

O projeto original era que essa fosse uma aventura solo com a versão de Ben Affleck, como visto anteriormente nos filmes da Liga da Justiça ambientado no DCEU, mas, quando ele se afastou (Affleck havia assinado para coescrever e dirigir, além de estrelar a produção), a produção passou para Matt Reeves, que vinha recebendo elogios por seu trabalho na nova trilogia de “Planeta dos Macacos”. Este removeu todas as referências para o DCEU e reposicionou o filme como uma reinicialização direta da franquia.

No novo longa, o bilionário Bruce Wayne (Robert Pattinson) age limpando as ruas de Gotham City há dois anos, vestido como o vigilante mascarado. Ao longo desse tempo, ele ganhou a confiança do tenente de polícia James Gordon (Jeffrey Wright) e os dois frequentemente trabalham juntos para resolver casos. Quando figuras políticas importantes são assassinadas por um serial killer (Paul Dano), Batman e Gordon investigam, descobrindo uma rede de corrupção oculta dentro da cidade que envolve o mafioso Carmine Falcone (John Turturro) e pode ter conexões com o assassinato dos pais de Bruce. Ao longo do caminho, ele recebe ajuda da ladra Selina Kyle (Zoë Kravitz), que está procurando por uma amiga desaparecida e tem suas próprias razões para atacar Falcone.

Apesar das recorrentes desconfianças do público pelos trabalhos passados de Pattinson na saga “Crepúsculo”, o ator britânico desempenha uma excelente performance, com uma qualidade inesperadamente comovente ainda não vista para o personagem. São bastante tocantes os momentos de quietude e reflexão que ele compartilha com seus coadjuvantes, igualmente afiados. Kravitz está excelente como Selina e consegue desperta uma química notável com Pattinson em suas cenas de flerte, além de investir na personagem com sua própria fisicalidade e movimento distintos. Da mesma forma, Wright faz um ótimo Gordon, tendo sua própria qualidade, que complementa bem o desempenho do protagonista.

Quanto aos vilões, Dano foi perfeitamente escalado como Charada. Ele está devidamente desequilibrado e assustador, afastando sua versão da galhofada de interpretações anteriores. Sua reformulação traz autenticidade e contemporaneidade na maneira como ele usa as mídias sociais e fóruns obscuros, transmitindo seus crimes ao vivo para um pequeno grupo de devotos seguidores. Da mesma forma, Colin Farrell está totalmente irreconhecível e muito divertido como Pinguim. Ele ainda apresenta um personagem em desenvolvimento e de suporte à Carmine Falcone, preparando uma atroz ascensão para uma vindoura série já confirmada para o HBO Max.

Por muito tempo, a alcunha de “O Maior Detetive do Mundo” – que nomeou a DC (Detective Comics) – foi praticamente ignorada pelo cinema. É revigorante ver que aqui, Matt Reeves se preocupou com isso e concentrou boa parte do tempo de projeção no trabalho investigativo. É notável a inspiração no Cinema Noir francês, em icônicas obras da Nova Hollywood na década de 70 e até mesmo mais contemporâneas como o cinema de David Fincher. O diretor também consegue criar uma atmosfera adequadamente sombria (e chuvosa) para Gotham, adotando a melancólica sensação do material original, que se intensifica ainda mais ao som da trilha original de Michael Giacchino.

Apesar de todas as qualidades, a atmosfera do filme e o ritmo dos diálogos dão a sensação de que as quase três horas de duração são excessivas, podendo ter passado por mais alguns cortes antes da finalização. A conclusão do longa também parece não se encaixar bem com o todo, deixando a impressão de que houve interferências de executivos no roteiro, forçando a opção por um final aberto para uma possível continuação. Ainda assim, essa é uma reinicialização de franquia completamente bem sucedida.

Ficha Técnica

Ano: 2022

Duração: 2h 55min

Gênero: Ação, Policial, Drama

Direção: Matt Reeves

Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Colin Farrell, Peter Sarsgaard, John Turturro, Andy Serkis, Jeffrey Wright

Avaliação do Filme

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