Por Luciana Ramos

 

Pautada em uma forte premissa de vingança feminista, “Bela Vingança” debate estupro, abuso e consentimento a partir da ótica de uma mulher ferida que, movida pelo trauma, assume a missão de “mudar” os homens, usando seu corpo como isca e o medo como ferramenta. Suas armadilhas são voltadas para aqueles que se passam como respeitosos, mas tratam as mulheres como meros objetos a serem consumidos e depois descartados.

Todas as noites, Cassandra (Carrie Mulligan) vai a um bar sozinha e finge estar bêbada e vulnerável, aguardando ser salva pela versão moderna do príncipe encantado: o nice guy. Movido pela avidez em ajudar, este não resiste à tentação da carne e demora muito pouco tempo para se converter em um animal predatório…até ser interrompido e questionado pela astuta e sóbria Cassandra, que transforma a dinâmica de poder ao se mostrar não tão indefesa.  

Na miríade de presas que atrai, ela espera (embora sem convicção) encontrar alguém que haja moralmente e refute o desejo criminoso, mas seus encontros só reforçam sua teoria de que os caras supostamente legais são tão ruins quanto os demais, visto que nasceram da mesma estrutura machista, ávida em sexualizar e vitimar mulheres – e ainda culpá-las posteriormente dos crimes cometidos contra elas.

Aos poucos, as motivações da protagonista são fundamentadas e o passado ajuda a explicar a razão de ter largado uma carreira promissora para trabalhar tediosamente em um café, sendo este o ponto principal da trama: o quanto o abuso sexual perturba a vida das vítimas e do seu círculo mais próximo de maneira profunda e duradoura, sendo os efeitos potencializados pela conjunção de impunidade legal e conivência social. Neste sentido, as presenças da reitora Walker (Connie Britton) e Madison (Allison Brie), sua ex-colega, são fundamentais, já que exploram o contexto que conduz mulheres a trocarem a sororidade por descrédito e escárnio, sendo incapazes de se colocarem na pele da vítima – ponto questionado enfaticamente no roteiro de Emerald Fennell, que também assina a direção.

A submissão de um propósito de vida à saga justiceira é trabalhada criticamente (em especial pela mãe de Nina, vivida por Molly Shannon), mas também ponto central de uma fantasia de vingança que preenche a tela em sequências deliciosamente perversas e divertidas. Infelizmente, Fennell parece ter medo da própria premissa e recua inúmeras vezes para um lugar confortavelmente dentro da lei, sabotando a capacidade catártica da trama. 

A cineasta opta, em determinado momento, pelo campo da comédia romântica e, assim, transforma o segundo ato no momento mais fraco do filme. A razão por trás da escolha é bem clara: comumente associado às mulheres, este deveria ser a representação dos seus anseios, devidamente contidos no espectro amoroso. Após abundar-se nas referências musicais e fílmicas do gênero, Fennell abruptamente reconduz sua narrativa à pauta inicial, pontuando um forte argumento no caminho, o da cumplicidade masculina. No entanto esta, como as demais ideias do longa, aparecem de maneira desordenada e excessivamente oscilantes, um caldeirão de ritmos, gêneros e argumentos que ideias expõem uma indesejada fragilidade na estrutura do roteiro, carecendo da necessária polidez.

Nota-se uma reflexão mais consistente no campo estético, com a direção de arte, figurino e trilha sonora em destaque. Os espaços habitados por Cassie em sua vida diurna (ou normal) são preenchidos por tons pasteis de maior saturação, sendo a casa dos seus pais, onde vive, esmagadoramente rosa e dourada. Os espaços são preenchidos por móveis e acabamentos kitsch que parecem prendê-la em um antiquário – talvez símbolo das convenções sociais, talvez do seu próprio imaginário.

Já o seu colorido trabalho é o tipo de ambiente hiperfeminino que se complementa aos figurinos da personagem. Os laços e tranças, a franja espessa e a mistura de cerejas e florais das suas roupas aludem a uma infantilização que é socialmente encorajada. Parecendo uma “garotinha”, Cassandra é inofensiva e doce; já vestida com roupas adultas ou sensuais, ela revela seu lado femme fatale. Desse modo, a direção de arte estabelece uma interessante contraposição explorada pela sétima arte desde os seus primórdios – vide às ingênuas e vamps que permeavam o cinema mudo. A trilha sonora oscila entre os dois campos, apostando em canções fúteis (Paris Hilton) ou sexualizadas (Britney Spears), que mais parecem refletir o olhar masculino do que serem expressões autênticas das mulheres, sendo os destaques as reeleituras de “Toxic” e “It’s Raining Men”.

Em meio ao caldeirão de boas (e desorganizadas) ideias está Carey Mulligan, em um dos seus melhores trabalhos. A atriz consegue imprimir confiança o suficiente na sua personagem para torná-la não só factível, mas atraente. O nível de detalhamento com que trabalha a psique de Cassie ajuda a contornar furos de roteiro e concedê-la profundidade e sensibilidade, suavizando o seu exterior sociopata.

Ainda que titubeante e, portanto, um tanto decepcionante, “Bela Vingança” trafega entre inúmeros pontos relevantes sobre discussões primordiais, como estupro e consentimento, abuso e impunidade. Ao apertar as feridas sociais corretas, o filme denota o talento embrionário – e, portanto, precedente de amadurecimento – de Emerald Fennell.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 113 min

Gênero: drama, crime, suspense

Direção: Emerald Fennell

Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Allison Brie, Connie Britton, Laverne Cox, Molly Shannon, Chris Lowell

Avaliação do Filme

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