Por Luciana Ramos

As narrativas cinematográficas nem sempre foram gentis com doenças mentais, em especial com portadores de esquizofrenia: de modo geral, eles são estigmatizados, descritos como caricaturas ou relegados à atos violentos; ou seja, servem mais como gatilhos de reação de outros personagens do que pessoas com profundidade.

É exatamente no sentido de desmistificar esta condição que Craig Roberts caminha em “Beleza Eterna”. Para isso, ele constrói um interessante mergulho na psique da sua personagem. Jane (Sally Hawkins) é confusa, oscilando entre o acanhamento por não conseguir se adequar plenamente às situações sociais e o ímpeto de dizer o que pensa sem medir suas palavras. Ela vive em um mundo bege, controlado por remédios que a deixam com sono e sem muita perspectiva…até que decide se livrar do medicamento.

Ao mesmo tempo em que seu tudo ao seu redor expande-se e ganha cores vibrantes, o seu comportamento torna-se mais errático: ela, sem perceber, magoa repetidamente a irmã Alice (Alice Lowe), seja diretamente ou atacando verbalmente outros membros da família. Jane não compreende bem os problemas que causa pois possui um rico mundo interior que a preenche quase inteiramente, como a direção de fotografia e mixagem de som mostram tão lindamente na composição de cacofonias, enquadramentos deslocados e zooms repentinos.

No meio das suas experiências estão fragmentos de memórias de outros tempos, quando era bem mais jovem e começou a apresentar seus sintomas. Por vezes, em conversas alheias, ela remete ao passado como maneira de afirmar a sua “normalidade”, algo contestado por Mike (David Twhelis), interesse romântico também disfuncional, o que a faz reconsiderar a sua jornada: a invés de ficar lutando para se encaixar no mundo dos outros, por que não buscar um entendimento da sua condição e, assim, viver melhor consigo mesma?

O seu caminho é tortuoso, permeado por pequenas decepções, como tudo na sua vida – algo comum aos demais, como descobre eventualmente. O tema, nas mãos de Roberts, é abordado com a delicadeza necessária e propõe questionamentos bastante pertinentes sobre condição mental e os padrões sociais de normalidade, abordado primordialmente na relação de Jane com suas duas irmãs e no modo como estas conduzem suas vidas.

Um dos maiores atrativos, no entanto, é o fantástico trabalho da direção de arte, que trabalha as cores para expor a (in)adequação da protagonista. Primeiramente, ela é apresentada em sua forma quimicamente controlada, trajando e cercada de bege, a cor mais morna do espectro. Sempre usando roupas e calçado grandes demais, seu figurino e as paredes ao seu redor vão sendo preenchidas pelo azul, cor que, no filme, exemplifica a sua doença. Aos poucos, a personagem vai sendo inundada por suas tonalidades, até ser forçada a enfrentar novamente sua condição para, enfim, atingir um equilíbrio – e, mesmo quando este se instala, o azul continua ali no seu casaco e no carro da irmã, em pequenos tons que ela enxerga ao seu redor.

Em contraste, há o vermelho, que permeia as pessoas com quem convive – Alice, seu marido Tony (Paul Hilton), Mike. Seria o seu oposto, mas ela incorpora pequenos detalhes da cor na sua roupa no momento que se vê mais livre, feliz e apaixonada (ainda que instável). Os pais, sempre de preto, prontos para um funeral, representam a dissonância, o desentendimento da condição da própria filha e, portanto, o afastamento emocional de Jane, que precisa tanto deles.

Sem focar tanto em grandes conflitos, “Beleza Eterna” faz um mergulho metafísico na experiência de uma personagem diagnosticada como paranoica-esquizofrênica que tenta usufruir da sua vida da maneira que melhor lhe convém, sendo obrigada a lidar com traumas passados e cobranças sociais presentes. Ainda assim, ela exerce bastante autonomia sobre seu cotidiano, criando um retrato mais amável dos portadores da doença do que o comumente visto no cinema. Ao centro, há a belíssima interpretação de Sally Hawkins, que está extraordinária no papel. Ela consegue elevar o material ao inserir pequenos tiques e movimentos inesperados que são lidos como inadequações ou confrontos pelos outros personagens, o que tornam sua Jane extremamente interessante. Um filme simples, visualmente impecável e bastante sensível.  

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 135 min

Gênero: comédia, drama, romance

Direção: Craig Roberts

Elenco: Sally Hawkins, David Twhelis, Alice Lowe, Billie Piper, Penelope Wilton

Avaliação do Filme

Veja Também:

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS