Por Murillo Trevisan

 

Baseado em um curta-metragem homônimo de 2013, este finalista em uma das premiações mais importantes da categoria (Festival Tropfest), “Cargo” narra a jornada de um pai para salvar a sua filha a todo custo de uma pandemia zumbi. A premissa soa como apenas mais uma produção de gênero, derivada das grandes obras do mestre George A. Romero (“A Noite dos Mortos-Vivos”), mas que se observada além da primeira camada, pode nos render mais.

Andy (Martin Freeman) e Kay (Susie Porter) formam um casal, que tentam adaptar-se às novas condições em uma Austrália pós-apocalíptica em busca de segurança e recursos para alimentar sua filha bebê Rosie. Após ser mordida por uma criatura, Kay torna-se hospedeira do temido “vírus”, colocando em risco sua família. Logo em seguida, um acidente de carro acelera o processo de sua transformação, que a deixa faminta por carne humana e, consequentemente acaba dando uma mordida em Andy, o transmitindo a maldição.

 

 

Desse ponto de partida, do qual exatamente sua obra original retrata, inicia-se a trajetória de um pai, que tem aproximadamente 46 horas de sanidade, à procura de um lugar onde possa deixar a sua filha. Em paralelo a essa trama principal, somos apresentados a Thoomi (Simone Landers), uma aborígene de 11 anos, que teve seu pai infectado, já em estado fantasma (como ela mesma denomina) e que procura o “homem sábio” (uma espécie de xamã para a tribo), com a esperança de que ele traga sua alma de volta ao corpo, o curando dessa condição. Através do recurso de flashback, vemos este mesmo ancião prenunciando os dizeres de que “o país está mudando”, envenenaram nossas terras” e “os homens também foram envenenados”.

No caminho do protagonista, nos deparamos com alguns outros pequenos núcleos. Dentre eles, Etta (Kris McQuade), a ex-professora que vive sozinha em uma escola abandonada, que lhe dá abrigo na primeira noite e disfarça suas feridas. Em um take, que à primeira vista nos parece desnecessário, ela retira uma peruca de sua cabeça revelando uma imensa cicatriz. Um pequeno detalhe que não é tratado pontualmente, mas que pode ser compreendido de forma indireta através de uma outra personagem posteriormente.

Outro grupo que nos é apresentado é o de Vic (Anthony Hayes) e Lorraine (Caren Pistorius). Este primeiro, de início dá abrigo à Andy e Rosie, mas depois revela-se antagonista, enjaulando nativos para usá-los de isca com os mortos-vivos, no intuito de roubar seus pertences. Em uma passagem rápida, nota-se um adesivo na caminhonete de Vic com os dizeres: “É contra Fraturamento? Dê o fora daqui”, indicando seu idealismo em questão à polêmica do método do fraturamento hidráulico para a extração de combustível fóssil. Estes e outros pormenores, demonstra a tamanha delicadeza com a qual foi desenvolvido o roteiro, pelas mãos de Yolanda Ramke.

Além da narrativa, Yolanda também é responsável, em parceria com Ben Howling, pela direção do longa (e do curta), que é de fato um outro grande acerto na obra. Martin Freeman (de “Sherlock” e “The Hobbit”) segura toda a carga dramática exigida por um personagem nestas condições, que ora como pai carinhoso, ora como um sobrevivente infectado, o que lhe requer uma certa flexibilidade. O elenco de suporte também não deixa a desejar: tanto o redneck racista quanto a criança aborígene conseguem extrair as diferentes sensações do espectador.

 

 

Em determinado ponto da trama, Andy e Thoomi se encontram, unificando sua jornada ao mesmo tempo em que evidenciam o contraste de sua cultura, onde de um lado há a crença em explicações espirituais e rituais de passagem – assim como quando a garota bate com uma pedra em sua cabeça simbolizando a dor da perda de um ente próximo (lembra da cicatriz na cabeça da professora?) – e do outro, apenas a aceitação de uma morte certa, sem a necessidade de um esclarecimento.

Seguindo os moldes recentes das produções da Netflix, o filme aposta em um ator de peso como protagonista, deixando de lado os aspectos técnicos, que aqui não impactam tanto devido ao gênero. Maquiagens substituem os custosos CGIs, enquanto a fotografia de Geoffrey Simpson (“Sob o Sol de Toscana”) se aproveita das belíssimas paisagens da Austrália, deixando o resultado mais natural e orgânico.

Sem justificar as causas que levaram o mundo a aquele colapso, “Cargo” consegue transpor de forma simples um pequeno argumento de um curta para um longa de 1h 45min, tratando nas entrelinhas de assuntos como preconceito, cultura e questões ambientais, que provavelmente estão envolvidas na origem dessa pandemia. Aqui, Yolanda aprendeu a principal lição de Romero:  um filme de zumbis não se trata dos zumbis.

 

Pôster

 

 

Ficha Técnica

Ano: 2017

Duração: 105 min

Gênero: drama, thriller

Direção: Ben Howling, Yolanda Ramke

Elenco: Martin Freeman, Anthony Hayes, Susie Porter, Simone Landers

 

Trailer:

 

Imagens:

 

Curta-Metragem (bônus):

 

Avaliação do Filme

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