Por Marina Lordelo

O longa-metragem de estreia da carreira da paulistana Renée Nader Messora em co-direção com o português João Salaviza, “Chuva é Cantoria Na Aldeia dos Mortos”, foi premiado pelo Juri na Mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes em 2018. Realizado durante nove meses na aldeia Pedra Branca, estado do Tocantins, o filme tem o seu protagonismo centrado em Ihjãc, um representante dos índios Krahô, que precisa realizar uma celebração de libertação do espírito de seu pai até a aldeia dos mortos. Neste processo de despedida, Ihjãc também se transforma e tenta reconstruir o seu papel de pai, filho e membro dos Krahô.

Centrada em aproveitar os recursos da comunidade indígena, Messora, que também assina a direção de fotografia da obra, a realiza em película de 16mm, um recurso raro em tempos de cinema contemporâneo. Desta forma, ela consegue atribuir um tipo de grão e textura às imagens que são peculiares ao negativo fotográfico. A luz natural é utilizada de forma engenhosa, valorizando o sol em horas mágicas (ao nascer e em seu descanso), assim como práticos naturais, como o rebatimento da luz do sol e da lua na água e na temperatura de uma fogueira. Isso torna as sombras irregulares, imperfeitas e, portanto, realistas, assumindo o universo Krahô de um jeito sensível. Os planos noturnos parecem ter sido desafiadores no quesito iluminação e, para superá-lo, os diretores investem em um som que poderia beirar o hiper-realismo, mas na verdade estão acentuados em meio a completa ausência dos sons urbanos, comuns aos ouvidos não-indígenas.

Nesse sentido, os cânticos religiosos e preces são utilizados em sintonia ao desenho de som de Pablo Lamar, que compartilha de sons da floresta em uma acentuada reverberação que descola o senso de realidade Krahô para além da compreensão não-indígena. E muito se dialoga com o cinema Tailandês de Apichatpong Weerasethakul, sobretudo em “Tio Bonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010) e “Mal dos Trópicos” (2004), através do som minucioso, da fotografia paciente e de uma espécie de homenagem em seu plano inicial mais contemplativo.

Para além dos aspectos mais técnicos, “Chuva é Cantoria Na Aldeia dos Mortos” também assume uma bandeira política, quando toca no massacre vivido pelos Krahô por fazendeiros, quando Ihjãc é obrigado a se apresentar com um nome “branco” Henrique e a entregar documentos oficiais, ou quando insere as particularidades culturais da questão de gênero na distribuição de papéis na paternidade e maternidade da comunidade. E essa sucessão de acertos é acentuada pelo respeito à religiosidade e aos limites individuais a que o protagonista é então submetido – Ihjãc teme por seu destino, que não foi escolhido nem deliberado, mas que chega como uma providência imanente de sua condição Krahô.

Iluminado pela lua urbana e rural, Ihjãc retoma o seu sentido e o seu caminho a partir de seus próprios pés (e, ainda que metaforicamente, não poderia ter sido de outra forma) para cumprir um retorno cheio de recomeços e de novos fins, se assim for no centro da cultura Krahô, que retoma a cachoeira lá do primeiro plano como alegoria para o mergulho nunca antes desejado.“Chuva é Cantoria Na Aldeia dos Mortos” é um filme de entrega – de Ihjãc, dos Krahô, e, sem dúvidas, de Messora e Salaviza.

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 114 min

Gênero: drama

Diretores:  Renée Nader Messora & João Salaviza

Elenco: Henrique Ihjãc Krahô, Raene Kôtô Krahô

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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