Por Luciana Ramos

A Paris do início do século XX foi tomada de soslaio por uma representação feminina moderna, com aspirações mais independentes e voz própria: Claudine, uma moça do campo que desafiava convenções. A popularização da sua história impulsionou o escritor Willy (Dominic West) a lançar mais aventuras suas, mudando as localidades e amadurecendo a personagem aos poucos. Seguiu-se, então, a mercantilização da obra literária na forma de roupas, perfumes e todos os tipos de artigos possíveis.

Os livros sobre Claudine foram sucessos retumbantes e possibilitaram a ascensão social do casal Willy e Gabrielle (Keira Knightley), que desfrutava dos privilégios das classes mais abastadas em reuniões regadas a champanhe. A intimidade dos dois, no entanto, guardava mais do que seus amigos podiam imaginar: era ela na verdade quem escrevia as memórias de sua vida no papel, tornando-as ficcionais o suficiente para escapar dos julgamentos alheios.

De início, aceitou a proposta do marido, que já “trabalhava” como autor (leia-se, contratava pessoas para escrever e comprava seus manuscritos secretamente) e estava sem material para vender. Gabrielle achou a ideia boba, mas se propôs a agradá-lo; afinal, Willy era um bom marido, que a tirou do tédio do campo e a concedia maior liberdade do que comum à época. As suas observações elevaram o conteúdo da história, comprovado pelo sucesso imediato…dele, que publicou o livro sob seu nome.

Os eventos descritos em “Colette” não se atém à reconstrução básica de uma biografia, acompanhando décadas da vida do personagem retratado. É também, prioritariamente, uma história sobre narrativas, ou melhor, sobre o modo como um homem se apossou da narrativa pessoal de sua mulher e gozou a fortuna decorrente.

Ela, em contraponto, inicia a sua jornada de certa forma abnegada: ainda que almeje ter reconhecimento, aquiesce ao ser repreendida pelo marido e parece feliz em se sujeitar ao segundo plano, observando-o dominar os salões com sua conversa fácil. Intimamente, troca o desejo que sentia por ele por experiências com mulheres e, aos poucos, vai se descobrindo.

O seu amadurecimento e, em especial, a influência da aristocrata Mathilde de Morny (Denise Gough), intimamente chamada de “Missy”,na sua vida, a desperta para a busca de maior protagonismo, seja no envolvimento com apresentações que envolvem mímica e dança – tidas como escandalosas na época por serem sexualizadas – ou na luta por assumir a autoria dos livros que escreveu.

Essa trajetória da busca pelo reconhecimento do seu trabalho que marca “Colette”. É um processo gradual, mas potente por revelar um tipo de subjugação que as mulheres infelizmente, um século depois, ainda não estão totalmente livres. Um ponto secundário importante do filme é a contextualização de Missy, que traja roupas tipicamente masculinas em uma sociedade amplamente machista. A sua dita liberdade de expressão se alia no seu alto poder aquisitivo, o que acrescenta mais uma camada à discussão feminina: estamos observando jornadas de pessoas privilegiadas, que amenizam o julgamento alheio pelo fato de terem dinheiro. Histórias parecidas, em classes inferiores, não teriam o mesmo sucesso.

O filme ilustra a jornada da sua protagonista com esmero, não caindo na tentação comum de querer abarcar detalhes supérfluos da vida inteira do biografado. Todas as passagens ilustradas são relevantes para a narrativa e condensam-se com uma ótima montagem, dinâmica, mas sem parecer apressada.

É interessante a forma como o diretor Wash Westmoreland trabalha seu campo de visão, retratando a inocente e sonhadora Gabrielle, de início, através de planos refletidos no espelho, uma construção que atesta para sua falta de identidade. À medida em que ela ganha protagonismo, isso é descartado e Colette, que era enquadrada perifericamente a Willy, passa a preencher a tela de cinema.

O longa se sustenta pelas ótimas atuações dos atores principais. Dominic West imprime energia e vigor em seu personagem que, quando contrariado, revela a violência e arrogância escondidas em seu dito entusiasmo. Keira Knightley, por sua vez, consegue dosar feminilidade, vulnerabilidade e força. Neste filme, a atriz, conhecida por sua predileção em encarnar mulheres de época, realiza um dos seus melhores trabalhos.

“Colette” retrata a história fascinante de uma mulher que saiu do lugar de submissão marital para tentar assumir a narrativa de sua vida. Mais de cem anos depois, sua jornada continua relevante, suscitando debates sobre a posição da figura feminina na sociedade.

Pôster

 

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 111 min

Gênero: drama, biografia

Direção: Wash Westmoreland

Elenco: Keira Knightley, Dominic West, Fiona Shaw, Denise Gough

Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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