Por Bruno Tavares

 

Apesar dos graves problemas socioeconômicos, o Brasil é visto como um país caloroso e seus habitantes são pessoas alegres. Esse positivismo encanta os estrangeiros e faz das terras tupiniquins objeto de pesquisas. Segundo o Relatório Mundial de Felicidade, organizado e divulgado pela ONU em 2017, os brasileiros estão entre os 25 povos mais felizes do globo. Tal alegria incondicional é um dos temas centrais de “Além do Homem”, longa de estreia do diretor Willy Biondani.

Na trama, acompanhamos Alberto Luppo (Sergio Guizé), um escritor brasileiro que mora em Paris. Sedento por reconhecimento e aceitação na exigente sociedade francófona, o jovem tenta a todo custo lançar um livro e, com isso, impressionar o pai de sua namorada. Entretanto, seus planos são frustrados quando o sogro lhe entrega o diário de Marcel Lefavre, um famoso antropólogo francês que desapareceu no interior do Brasil, e pede que investigue o que aconteceu ao estudioso.  Com isso, Alberto é obrigado a retornar à terra natal com o objetivo de transformar suas buscas em um livro. Tal viagem será responsável por uma profunda mudança na vida do escritor e irá lhe proporcionar um importante encontro consigo mesmo.

Logo ao chegar, Alberto conhece Tião (Fabrício Boliveira), o motorista de taxi que o leva a um dos locais visitados por Marcel. Após esta se mostrar uma pista infrutífera sobre o paradeiro do francês, a dupla decide passar a noite em uma cidade próxima. A vila em questão possui um ritmo de vida diferente e abriga moradores dos mais variados, entre eles Zoca (Otávio Augusto), dono do hotel Ambos Mundos, Rosalinda (Flávia Garrafa), sua esposa, e a enigmática Bethânea (Débora Nascimento).

 

 

Com um roteiro cuidadoso, “Além do Homem” nos apresenta a personagens curiosos. Alberto, o protagonista, é de longe o mais desenvolvido e interessante deles. Toda a viagem ao Brasil se mostra, na verdade, uma jornada de autoconhecimento. O jovem é convencido e cheio de preconceitos construídos por sua educação privilegiada e pelos anos vividos no exterior. De certa maneira, ele despreza a cultura do país e sofre profundamente com as dificuldades enfrentadas aqui. Seu desejo é voltar imediatamente ao mundo civilizado, porém, se vê preso em na cidadezinha misteriosa do interior brasileiro. Como “Alice no País das Maravilhas”, Alberto tenta dar sentido às bizarrices dos moradores locais e sair dali. Entretanto, assim como a personagem de Lewis Carroll, ele acaba ficando cada vez mais preso ao ambiente.

À medida em que permanece no Brasil, Alberto vai se desconstruindo sem nem ao menos notar. Todas as camadas que ele edificou ao redor de si com o intuito de parecer civilizado aos olhos franceses caem por terra pouco a pouco. Visualmente, essa metáfora é bem representada no figurino do personagem. Logo no início o vemos alinhado, de blazer, óculos escuros e chapéu. Todas essas peças de roupa são perdidas ao longo da história, até que ele se desnude completamente durante um ritual místico de renascimento.

Os períodos de amadurecimento pessoal do personagem são marcados pela água. No filme, o elemento essencial à vida é uma fonte de ressignificação. Desde o início em Paris, Alberto é cercado por água, seja no Rio Sena, no Canal Saint Martin ou nas gotículas que se surgem na janela de casa. Já no Brasil, o líquido precioso forma a Cachoeira da Racha, que teria criado toda a vida existente no mundo. Por fim, a metáfora criadora da água ganha intensidade na tempestade que cruza com o personagem e o faz renascer, bem como na experiência transcendental que ele experimenta na cachoeira.

 

 

Ainda que a trama gire em torno de Alberto, os demais habitantes da vila também têm algum destaque. Mesmo rasos, cada um deles acrescenta algo à narração. Tião, por exemplo, representa o alívio cômico e é o guia do escritor nesse mundo chamado Brasil. Zoca, em seu hotel Ambos Mundos, tem alma de poeta e gosta de falar por meio de versos significativos. Já Rosalinda é a representação do amor carnal primitivo. Por fim, Bethânea se mostra como o sagrado feminino, sempre etérea e envolta em mistério. Com sua beleza, ela é a responsável pela transição final de Alberto. Com diferentes particularidades e sotaques, o grupo de moradores se mostra como um retrato do Brasil miscigenado. A cidade onde vivem pode ser no interior de qualquer estado, pois nenhuma característica define a região a qual pertence. Esta foi uma escolha consciente de Biondani a fim de gerar uma afinidade com todos os públicos.

Repleto de metáforas, o longa mistura referências. Do Modernismo, o diretor trouxe o movimento antropofágico, bem representado pelo quadro do Abaporu no hotel Ambos Mundos. É daí que surgem as ideias de Alberto relacionadas à deglutição sexual e rituais indígenas, numa clara valorização da cultura nacional. O longa também nos apresenta ao conceito do universo feminino, responsável pela (re)criação da vida. Isso se dá na peculiar cena na casa da Mazé, que tem seu ápice no momento em que Alberto tira a camisa e coloca um vestido, abrindo mão de seus últimos resquícios “civilizados” e abraçando sua essência plural. Tudo isso é intensificado por uma fotografia assertiva. Paris, símbolo do pensamento racional, é retratada em tons claros e frios. Já no Brasil, as cenas ganham cores quentes e fortes que realçam as belezas naturais.

Por ser o longa de estreia de Biondani, “Além do Homem” mostra-se uma produção consistente e tecnicamente estruturada. O diretor trabalha satisfatoriamente com o roteiro e faz boas escolhas, assim como os atores. Mesmo com um final aberto, o filme se mostra dono de uma poesia sutil e cumpre seu objetivo ao mostrar de maneira poética o difícil processo de autoconhecimento humano.

 

Pôster:

 

Ficha Técnica:

Ano: 2018

Duração: 91 min

Gênero: Drama

Diretor: Willy Biondani

Elenco:  Debora Nascimento, Fabrício Boliveira, Sergio Guize, Flávia Garrafa, Marilyne Fontaine, Stéphan Wojtowicz, Otavio Augusto

 

Trailer:

 

Imagens:

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