No início da sua carreira como roteirista, Shane Black ajudou a compor o imaginário popular dos anos 90 com a criação da franquia “Máquina Mortífera”. Os filmes traziam em sua essência uma combinação de ação policial com comédia e exploravam o carisma de Mel Gibson e Danny Glover.

 

O enorme sucesso levou as previsíveis derivações que resultaram no esgotamento do subgênero, facilmente suplantado por produções mais apelativas ao grande público, como os filmes de super-heróis. Após dirigir “Homem de Ferro 3”, Black afastou-se das tendências atuais para retornar ao tipo de entretenimento que lhe tornou famoso.

Em “Dois Caras Legais”, a comédia escrachada pontua cada uma das inúmeras reviravoltas na investigação de um caso policial. Por meio da dinâmica do “casal estranho”, Black utiliza os contrastes entre os personagens de Ryan Gosling e Russell Crowe para construir suas piadas, enaltecendo-as com o trabalho físico dos seus atores.

dois caras legais 1

O resultado é um filme que supera as expectativas por mostrar-se inteligente. Seu apelo principal pauta-se no desenvolvimento de todos os personagens apresentados, fundamentados em motivações explicadas didaticamente. Esse trabalho narrativo deriva-se da interação entre os mesmos e situações adjacentes, que servem não só para impulsionar a ação dramática como também para suplantar eventuais previsibilidades.

No cerne, estão os “caras legais” do título: Holland March (Ryan Gosling) é um detetive meia-boca, alcoólatra e pai solteiro com uma certa predileção por dormir em banheiras. Sua renda vem dos trabalhos prestados a velhinhas inocentes, de quem cobra pagamento adiantado. Uma investigação sobre a morte da mais famosa atriz pornô o coloca no caminho de Jack Healey (Russell Crowe), contratado para resolver os problemas alheios através da violência.

Encarregado de proteger a ativista Amelia Kuttner (Margaret Qualley), também desaparecida, ele resolve relutantemente unir-se à March para desvendar a conexão entre as duas mulheres. Como esperado, os dois acabam deparando-se com uma conspiração muito maior.

 

A ambientação nos anos 70 afasta Black da obrigação em voga com o politicamente correto, o que ele explora à exaustão: há, por exemplo, a inclusão de Holly (Angourie Rice), filha adolescente de March, como parte indispensável da investigação, além do uso da pornografia como ferramenta importante da trama. Esta escolha não reflete uma arbitrariedade misógina como possa parecer, mas é inserida para ajudar a contextualizar o período retratado. Esse movimento estende-se à outros símbolos, como a música disco e o ativismo da contracultura, ao mesmo tempo instrumentos de homenagem e paródia.

dois caras legais 2

A brincadeira com os absurdos e cafonices, aliás, não restringe-se ao retrato da época, estendendo-se ao próprio subgênero que Black ajudou a difundir. Trabalhando com a quebra da expectativa das piadas, debocha das limitações de seus personagens e, consequentemente, dos clichês atribuídos aos filmes de ação policial. Um exemplo dessa dinâmica é a cena em que March e Healey entram em um elevador determinados a enfrentar matadores armados mas, ao verem um banho de sangue em andamento, desistem da ideia.

Porém, o sucesso da proposta do filme decorre especialmente da química entre Crowe e Gosling, afiados em cena. Enquanto o primeiro é capaz de mesclar certos níveis de desprezo aos acontecimentos ao redor – pontuados pela ironia – com uma sensibilidade aparente nos momentos mais improváveis, o segundo abusa de uma caracterização escrachada do estúpido e revela um grande timing cômico. Ademais, Gosling usa brilhantemente o humor físico, criando algumas das melhores passagens do longa.

Um “buddy movie” em essência, “Dois Caras Legais” mostra-se inteligente por ser debochado e explora o limiar do humor em uma trama cheia de reviravoltas. Extremamente engraçado, vale pela excelência do trabalho dos seus atores, com destaque para o talento da jovem Angourie Rice, que transita com segurança entre a comédia e o drama. Igualmente atrativo pela composição dos anos 70, oferece entretenimento sem maiores pretensões.

 

Ficha técnica dois caras legais poster


Ano:
 2016

Duração: 114 min

Nacionalidade: EUA

Gênero: ação, comédia

Elenco: Ryan Gosling, Russell Crowe, Kim Basinger, Angourie Rice, Matt Bomer

Diretor: Shane Black

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

 

Avaliação do Filme

Veja Também:

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS

O Menino e a Garça

Por Luciana Ramos   Aos 83 anos, Hayao Miyazaki retorna da aposentadoria com um dos seus filmes mais pessoais. Resvalando...

LEIA MAIS