Por Luciana Ramos

 

Durante décadas, Harvey Weinstein foi uma das figuras mais poderosas de Hollywood. Junto ao irmão Bob fundou a Miramax nos anos 90 e dominou o cenário audiovisual independente. Posteriormente, decidiu ampliar o escopo de influência e investiu na consagração de sua marca através de premiações. Dos grandes festivais a noites de gala com políticos, transitava entre os ambientes com extrema facilidade; parecia imbatível.

Inúmeras histórias (sempre reduzidas a burburinhos) relatavam sua grosseria com colegas e, com maior intensidade, funcionários. Quase ao pé do ouvido, Hollywood comentava seu comportamento tóxico em relação às mulheres, mas esta narrativa só veio mesmo à tona com o Me Too. Este nasceu com uma proposta de sororidade concreta e se difundiu globalmente quase por acaso, através de um tweet da atriz Alyssa Milano. Seu relato de assédio foi potencializado pela profusão de histórias similares, sempre contadas com o temor de nomear o algoz. Entre elas, a da atriz Rose McGowan chamou a atenção por dois motivos: primeiro, era uma denúncia antiga, muito repetida e pouco ouvida, que acendeu um debate legítimo sobre dar voz às vítimas; em segundo lugar, a acusação era de estupro.

Mais tarde, com a exposição minuciosa do The New York Times, seria revelado que o criminoso era Weinstein, que se safava da cadeia com suborno, ameaças e acordos de confidencialidade. “Ela Disse”, dirigido por Maria Schrader, detalha bastidores desse processo investigativo, comandado por Jodi Kantor (Zoe Kazan) e Meghan Twohey (Carey Mulligan). Incentivadas pela editora do jornal, Rebecca Colbert (Patricia Clarkson), que sentia uma tímida mudança social no ar, elas decidiram investigar Hollywood, onde um sistema de silenciamento nutrido por agentes, empresários e advogados parecia imperar.

Conforme mostra a trama, as duas jornalistas tiveram imensas dificuldades em colher testemunhos. Amedrontadas, as mulheres que procuravam temiam ser estigmatizadas e, pior ainda, punidas por falarem a verdade. Ao mesmo tempo, Jodi e Meghan vão paulatinamente se sentindo encurraladas – em determinado momento, Dean Baquet (Andre Braugher) avisa que elas devem estar sendo seguidas e grampeadas. Isso impregna o trabalho de um senso de urgência, também alimentado pelo fato que o jornalista Ronan Farrow andava entrevistando pessoas sobre o mesmo tema.

“Ela Disse” poderia ser pautado por esses elementos, aprofundando-se no suspense inerente à investigação. Porém, opta por caminho oposto, dando mais espaço aos relatos das mulheres. Os abusos nunca são mostrados – as descrições detalhadas somam-se à languidos enquadramentos de corredores de hotéis, onde muitos desses casos aconteceram – e, dessa forma, evita-se o sensacionalismo da questão.

O título resume bem o propósito do filme, mais preocupado em ser um testemunho social e político do que um simples thriller: os casos ocorreram e, para a mudança estrutural se concretizar, é preciso mantê-los na luz, fazer um esforço de não virarem poeira histórica. Somam-se a isso perspectivas bem-vindas sobre a dureza da maternidade e a sororidade como um espaço de acolhimento.

Diante disso, pode-se dizer que o longa não tem a potência objetiva de outros similares, como “Spotlight” e “Todos os Homens do Presidente”. É, por vezes, morno, mas consegue detalhar com eficácia os bastidores da investigação até um ótimo terceiro ato, focado no embate jurídico que precede a publicação de qualquer artigo desse escopo. O filme acerta (e muito) em não mostrar Weinstein como um personagem (de forma a humanizá-lo), focando no modo como a bestialidade de seus atos afetou inúmeras mulheres por décadas.

As atrizes que a interpretam, como Samantha Morton e Jennifer Ehle, possuem seu próprio histórico com Harvey (ambas na esfera de grosseria que resvala em abuso moral) e sabem como colocar a emoção a serviço da história, engrandecendo os relatos de suas personagens. Um trabalho ainda mais difícil é o da dupla principal, Zoe Kazan e Carey Mulligan, que carrega o peso do caso em seus rostos e, em muitas passagens, pontuam as histórias com suas reações. Elas ouvem, mas também se emocionam, ficam com raiva e parecem exemplificar a gama de emoções de todos os relatos do filme – um trabalho exaustivo e, nas mãos delas, primoroso.

Os processos judiciais decorrentes dessas denúncias seguem em curso em três cidades: Londres, Nova York e Los Angeles. Nesta última, Weinstein foi recentemente condenado por três crimes, o de estupro, copulação oral forçada e abuso sexual. Ainda é cedo para alegar uma mudança profunda nas relações de trabalho do mundo do entretenimento, mas as coisas parecem ter avançado desde 2018, quando o artigo do Times revelou um dos esquemas de violência e silenciamento mais asquerosos dos últimos tempos. “Ela Disse” resume todos esses fragmentos históricos recheados de sentimentos conflitantes, e concede a devida importância ao trabalho das duas jornalistas que revelaram os fatos ao mundo.

Ficha Técnica

Ano: 2022

Duração: 2h 09 min

Gênero: drama

Direção: Maria Schrader

Elenco: Zoe Kazan, Carey Mulligan, Patricia Clarkson, Jennifer Ehle, Samantha Morton, Andre Braugher, Angela Yeoh

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