Por Luciana Ramos

 

“Entre Mulheres” nasce primeiro da indignação da escritora Miriam Towes diante dos acontecimentos de Manitoba, colônia remota localizada na Bolívia. Entre 2005 e 2009, centenas de mulheres descobriram que foram sedadas e abusadas por seus companheiros, vizinhos e parentes. O cenário parecia surreal, não só pelo caráter extremamente brutal como pela revelação da composição daquela sociedade: como ainda poderia haver um lugar de tamanha privação dos direitos femininos? Towes então se propõe a debater todas as sutilezas do caso no formato de um romance que impõe dois desafios, o impasse entre ficar ou deixar a colônia e uma limitação de tempo para fazê-lo.

Sua narrativa complexa, abarcando pontos de vista conflitantes, impressionou e atriz e diretora Sarah Polley, que se dispôs a adaptá-la para o cinema. Seu roteiro segue as linhas gerais do livro e enaltece o tema ao criar justaposições estéticas que reforçam os pontos abordados. São inúmeros os planos de mãos entrelaçadas, tranças (seu processo de “costurar” o cabelo e desfazer os nós), a inocência das crianças transitando em um ambiente tão cruel. Constrói-se, em suas mãos, um filme surpreendentemente dinâmico, que sabe impor obstáculos narrativos – alimentando, assim, a expectativa do público – ao mesmo tempo em que não dispersa o foco.

Este é sim um longa pautado no diálogo, cabendo uma certa disposição de quem o assiste a ouvir e compreender os significados do que está sendo dito. Caso tenha real interesse, certamente sairá da projeção melhor do que entrou, pois esse é o tipo de produção sensível o suficiente para comover e provocar reflexão em pesos equilibrados.

Um dos trunfos é a diversidade dos pontos de vista apresentados. Na trama, após terem sido sedadas com tranquilizante para vacas e estupradas por anos, as moradoras de uma colônia se revoltam e, enfim, descobrem o que lhes faltava: o nome de cada agressor. Os homens são levados pela polícia – para sua própria proteção, conforme a narração enfatiza – possuindo a expectativa de soltura após quarenta e oito horas. Esse é o tempo que um conselho formado por três famílias tem para decidir se perdoam, seguem em frente e aquiescem à vida de violência, se ficam e lutam ou se partem da colônia. A última opção, cabe dizer, não é tão simples quanto imaginado, visto que nenhuma delas sabe ler ou escrever, tem conhecimento específico sobre onde estão e todas possuem vínculos afetivos com os violentadores.

Impõe-se, assim, um debate truncado para se chegar a um bem comum que não necessariamente resolve todos os conflitos, mas pode abrir as portas para um futuro melhor. Este é o ponto focal do longa: vivendo em uma sociedade opressora, quem são estas mulheres sem os homens? São vítimas, mas também algozes, na medida em que reproduzem o ciclo de violência e ensinam outras a sofrerem em silêncio? E as crianças, até quando são inocentes?

Diante desta rica teia de discussão, cabem algumas observações. A volta de Klaas, marido de Mariche (Jessie Buckley), que não aparece diretamente na trama, por si só já impõe um medo exacerbado nas moradoras da comunidade. Embora estejam em número maior, elas sentem a violência se aproximar e oscilam em suas reações, do medo a aceleração dos planos, por não estarem acostumadas a lutar. Seu contraponto é August (Ben Whishaw), o professor da vila que é designado para fazer anotações das reuniões do conselho. Sensível e atento, ele não é pintado por Polley como um grande salvador, mas apenas uma testemunha que se coloca à disposição de ouvir aqueles depoimentos e usá-lo posteriormente como ferramenta de transformação, colocando em pauta o papel da educação.

Igualmente intrigante é a anulação coletiva da personalidade de Melvin (August Winter), um garoto trans. Chamado repetidamente de Nellie, seu nome de batismo, ele só vê possibilidade de comunicação com as crianças, que o aceitam sem questionamentos. Sua presença é também um ótimo ponto de reflexão sobre a afirmação de individualidade em um ambiente tão opressor.

A riqueza de detalhes é potencializada pelas excelentes atuações do elenco principal, composto por Claire Foy, Jessie Buckley, Rooney Mara, Judith Ivey e Ben Whishaw. É impressionante como um complementa o outro, pontuando pela expressão facial as contradições e potencialidades de cada personagem.

“Entre Mulheres” é um trabalho fascinante da diretora Sarah Polley, que propõe um debate sem cair nas armadilhas da superficialidade ou didatismo, permanecendo interessante do começo ao final.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 44 min

Gênero: drama

Direção: Sarah Polley

Elenco: Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand, Judith Ivey, Ben Whishaw

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