Em seu livro de memórias, John Waters, diretor de filmes cult como “Pink Flamingos”, ponderou sobre a série de assassinatos cometidos pela “família Mason”. O que os distanciava? Vindos da mesma origem, seguidores da cultura hippie, ele se perguntava: estariam separados pela quantidade de drogas que ingeriram, que “fritaram” os cérebros daquelas meninas e as tornaram suscetíveis as ideias macabras de Mason? Ou haveria uma predisposição ao crime?

Em 1969, muitos fizeram a mesma pergunta. O ato violento transbordou os ânimos já exaltados – e marcados por um profundo abismo cultural entre gerações – em relação a utopia pacifista nascida no começo da década. O confronto ao establishment, pautado em torno do consumismo e da conformidade a padrões sociais limitantes, era consolidado pela negação dos jovens aos vestidos rodados e casamentos de aparência, tão comuns quanto os consumados por amor: com flores nos longos cabelos, roupas sucateadas e descalços, os hippies clamavam se desprender das amarras sociais rumo a uma verdadeira revolução comportamental.

Repudiados pelos defensores da “moral e bons costumes”, eles pregavam o poliamor e a vida em comunidade. Marginalizados, muitas vezes recorriam à questionáveis fontes de renda, como o tráfico ou a pilhagem de restos de comida nos lixos dos “ricos”. Inofensivos, porém, pareciam sinalizar uma mudança potencialmente irreversível.

Ironicamente, um dos personagens principais na interrupção deste processo foi Charles Mason, que adotou a filosofia como forma de construir e expressar poder. Tendo vivido grande parte da sua vida em cadeias, ele, ao sair em 1967, decidiu colocar em prática os ensinamentos que teve quando confinado (um misto de Cientologia com as pregações do livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, de Dale Carnegie) para recrutar mulheres jovens e suscetíveis, que exerceriam de maneira subserviente os seus comandos. Cabia a elas, por exemplo, as tarefas de arranjar e cozinhar as refeições, servidas antes para os homens que, após estarem completamente satisfeitos, lhe passavam as comidas – símbolo da misoginia intrínseca ao grupo criado por ele.

Woodstock, 1969

A crescente e posteriormente mista “família” era devidamente manipulada com controle por Mason de dosagens de LSD, sexo (ele, como líder, determinava as pessoas, o local e a forma das relações) e mensagens ególatras, onde se colocava como centro do mundo – ideia que posteriormente expandiria e culminaria na criação de uma fictícia “Revolução” de cunho racista intitulada “Helter Skelter”, a exemplo da música dos Beatles. Ironicamente, estes acontecimentos são indissociáveis da própria estrutura hollywoodiana, dinâmica central ao retrato da época em “Era Uma Vez…em Hollywood”.

A indústria criativa vivia naqueles tempos uma profunda transição: perdendo espaço entre o público jovem por conta da apresentação engessada de um panorama social em profunda decadência, os estúdios paulatinamente (e, diga-se de passagem, a contragosto) concederam espaço aos jovens de ideias e estéticas transgressoras, a exemplo da road trip alucinógena de Dennis Hopper, “Sem Destino”. Atores consagrados no antigo formato, como Liz Taylor e Barbra Streisand (na época, com menos de 30 anos, mas vista como “velha”) eram desprezados pelo público consumidor, que estava em busca de rostos que representassem os novos clamores sociais – crise existencial representada na figura de Rick Dalton, personagem de Leonardo DiCaprio no filme de Quentin Tarantino, um ator que cimentou a sua persona no Western e sofre com o declínio do gênero.

Seu amigo e faz-tudo Cliff Both (Brad Pitt), por sua vez, derivou-se de dois homens com trabalhos similares que cruzaram o caminho de Mason: o primeiro, Gary Kent, trabalhou como dublê no Rancho Spahn na série “Lash of Lust”; o segundo, Donald “Shorty” Shae, era aspirante à mesma profissão e, por se opor à Charlie, acabou morto. O rancho, por sinal, que se tornou o decadente local de moradia da família, era, anos antes, a locação preferencial para gravação das produções de “bang bang”, a exemplo da famosa série “Bonanza”.

Gary Kent detalha em entrevista seu trabalho no Ranch Spahn e seu encontro com Charlie Mason:

A escolha de Tarantino em adotar o ponto de vista de dois personagens masculinos e ficcionais dos “velhos tempos”, inseridos no contexto histórico através da reconstrução das vidas tanto das mulheres da “família” quanto de Sharon Tate oferece um vasto escopo da época, mas deixa de fora as aspirações do próprio Mason em Hollywood (propositalmente, a fim de não romantizar sua figura). Pois eis que ele, grafado na história como perigoso psicopata, saiu da prisão com aspirações de se tornar famoso. Rejeitado pela Warner, Universal e Brothers Records, aliou-se a Dennis Wilson (baterista do Beach Boys) e posteriormente ao produtor musical Terry Melcher (filho da atriz Doris Day) como forma de alavancar sua carreira de cantor.

Decisivamente, foram as falsas promessas de Melcher (que nunca teve a real intenção de assinar nada, mas sentia medo dele) que determinou um ponto trágico e fundamental na história, pois foi quando Mason se viu prestes a perder a moradia do rancho, o respeito dos seguidores e a liberdade por conta do envolvimento em dois crimes distintos que ele disse ao seu grupo alienado: vão à casa que era do Terry Melcher e matem todos dentro. Por conta disso, Sharon Tate, grávida de nove meses e locatária do imóvel, seu cabelereiro e melhor amigo Jay Sebring e mais três pessoas tiveram suas vidas brutalmente tiradas.

Não é possível, obviamente, responsabilizar a negativa da indústria criativa pelos crimes visto o caráter doentio tanto de Mason quanto de seus seguidores, mas é nítido o seu impacto na indústria cultural americana, tanto no fascínio de algumas estrelas pelo caso (Jack Nicholson assistiu ao julgamento, Dennis Hopper entrevistou Mason e Joan Didion, as mulheres da família) quanto pela consequente troca de um olhar positivamente transgressor (“Sem Destino”) para mais sombrio (“Apocalypse Now”), socialmente questionador (“Um Dia de Cão”) e político (“Klute – O Passado Condena”), talvez um amadurecimento natural do pensamento crítico vigente na época, talvez o símbolo da paranoia que cresceu posteriormente aos assassinatos da família Mason, da qual os hippies que lutavam por paz e amor foram as maiores vítimas.

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