Por Luciana Ramos

 

Na ampla e detalhada pesquisa sobre os crimes da “família Manson” para seu podcast, a historiadora americana Karina Longworth sabiamente amarrou os eventos à jornada do líder do culto em Hollywood, fruto das suas ambições pelo sucesso, uma representação tanto da penetração de tipos como o seu (hippies que, marginalizados, buscavam expressar novas concepções de mundo) no mainstream.

Em 1969, Hollywood passava por um momento conturbado: em crise desde a perda do monopólio dos cinemas e advento da televisão, via o público se esvair. Em grande parte, a debandada era fruto da não identificação dos jovens com os moldes tradicionais e moralistas. A paulatina abertura para novos criadores como Warren Beatty e Dennis Hopper configuraria uma reinvenção, doravante conhecida como Nova Hollywood.

O tortuoso processo, como esperado, vitimou aqueles que tinham suas personas artísticas ligadas ao passado, como é o caso de Ricky Dalton (Leonardo Di Caprio), centro narrativo de “Era Uma Vez…em Hollywood”. Em profunda crise existencial, que o faz chorar a qualquer momento, o ator, que fez sua carreira com pequenos vilões de Western, vê-se transformado em um produto genérico, usado para ascensão de astros mais pop, como Bruce Lee (Mike Moh).

Antecipando o fim de sua carreira e dividido entre o ímpeto de provar seu talento e a sua inabilidade de permanecer sóbrio, ele conta com o dublê Cliff Both (Brad Pitt) para organizar seus afazeres e o levar de canto a canto. Este, por sua vez, também sofre com o declínio do gênero, além de ser estigmatizado pela indústria por um fato nebuloso do passado – um claro aceno ao mistério envolvendo a atriz Natalie Wood e a participação do seu marido, Robert Wagner.   

Símbolos da velha ordem, os homens transitam pelas ruas de Los Angeles observando a presença de hippies como indicativo da mudança social – condenado em instâncias diferentes pelos dois, com maior simpatia de Booth, graças aos seus encontros ocasionais com uma garota chamada Pussycat (Margaret Qualley). É a interação destes dois personagens que abre o campo para o espectador explorar algumas nuances da “família Manson”, apresentada, majoritariamente, pelas mulheres do grupo. Não obstante, Dalton é vizinho que ninguém menos que Roman Polanski (Rafal Zawierucha) e Sharon Tate (Margot Robbie), a vítima mais conhecida do psicopata.

A trama, portanto, preocupa-se em contextualizar o processo transicional da indústria do entretenimento através da experiência de Ricky (apontando, inclusive, o apelo comercial dos westerns spaghettis filmados em Roma) enquanto ambienta lentamente os eventos reais do massacre Tate-La Bianca como pano de fundo, trajetória que culmina em um terceiro ato decisivo e sangrento.

Por se tratar de uma obra sobre Hollywood, o filme trabalha com referências mais abertamente, incluindo não só aparições de celebridades como o já citado Bruce Lee (fruto de controvérsia dado o seu uso como mecanismo cômico e, por isso, isento de aprofundamento) como também da apresentação do processo de filmagem, das conversas de bastidores e dos pensamentos do protagonista, apresentados visualmente por pequenas interseções em P&B. Entre elas, a mais interessante é a representação imagética de uma oportunidade perdida, montada através da união de falsos raccords (pequenas descontinuidades temporais) ao barulho característico da troca de rolos.

Brincando com o fértil terreno, Tarantino não se preocupa em apressar os eventos e, mesmo que o seu filme se valha das costumeiras excelentes tiradas cômicas, o efeito é sentido. De fato, a edição característica dos seus primeiros trabalhos, um dos componentes estéticos que o tornou conhecido, tem deixado saudades desde a morte trágica de sua antiga parceira, a editora Sally Menkel. Sem condensação, suas obras mais recentes (a exemplo de “Django” e “Os Oito Odiados”) sentem em diferentes níveis este efeito.

Moldado pelo olhar masculino, o longa oferece um rico debate sobre o uso de um massacre histórico como ponto culminante da trama. Primeiramente, mostra-se bastante acertada – e até sensível – a não introdução de Charlie Manson efetivamente na narrativa, escolha que exime potencial e indesejada romantização. Através das suas seguidoras, o funcionamento do seu grupo é mostrado, mas o diretor exime-se de apresentar os eventos de meados de 1969 com maior contextualização, trocando parte de sua brutalidade por deboche na figura do grupo que, armado, dirige à noite até a colina da rua Ocean Drive.

A escolha mostra-se ao mesmo tempo adequada ao estilo do autor e um tanto decepcionante em vista da complexidade dos fatos – envoltos em uma cultura de ódio ainda presente hoje, mesmo que em formato diferente. O mesmo ocorre com a forma com que Sharon Tate é apresentada: sempre dançando, quase sem falas, de maneira extremamente rasa. Este tratamento acarreta em interpretações contrastantes: por um lado, a sua persona histórica se vê privada, mais uma vez, de um interesse amplo, sendo relegada a uma ferramenta de roteiro para a jornada alheira; por outro lado, cabe notar que, ainda assim, a sucessão de pequenas cenas em que desliza luminosamente (muitas adicionadas após críticas no Festival de Cannes) é, ainda, a mais respeitosa recriação de sua imagem – visto a obsessão hollywoodiana em ater-se ao seu assassinato, a exemplo do duvidoso filme “The Haunting of Sharon Tate”.

Ainda assim, Tarantino perde uma oportunidade valiosa, já que a atriz, por sua participação em “Vale das Bonecas”, havia se tornado símbolo da nova era cultural. A sua escolha de colocar trechos de “A Arma Secreta de Matt Helm” em cena, relegando o filme mais famoso de Tate a uma referência, mostra-se, ao mesmo tempo, uma abordagem mais precisa (foi o último longa lançado da atriz, reforçando a ideia de uma indústria ainda em transição) e menos pungente.

Combinando contextualização cultural, exploração das raízes cinematográficas, pitadas de deboche e revisionismo histórico (alinhado às narrativas de seus filmes predecessores pautados na vingança), “Era Uma Vez…em Hollywood” é um bom filme, muito por conta do seu terceiro ato, mas que não impressiona tanto quanto obras mais bem amarradas, como “Pulp Fiction” ou o próprio “Bastardos Inglórios”. Mesmo trabalhando com repetições, em especial na experiência de Ricky Dalton, Tarantino consegue imprimir a atmosfera de uma época conturbada de transição, que foi profundamente marcada por Charlie Manson.

Para isso, se vale do talento de seus atores em pontuar os diálogos com humor. Pitt, por exemplo, exprime o seu melhor quando voltado para papéis menos psicologicamente densos, por isto lhe dar liberdade para fazer humor tanto do personagem quanto com ele. Já Di Caprio parece antecipar os obstáculos futuros enquanto ator (que não exime ninguém, visto o que se tornou a carreira de Robert De Niro), explorando as nuances tragicômicas de seu Ricky Dalton em passagens hilárias.

Não obstante, cabe destacarmos as performances excelentes de Julia Butters (em uma pequena e promissora aparição) e Margaret Qualley. Filha da atriz Andie McDowell e com carreira sedimentada em Hollywood, ela é uma das muitas escolhas do casting (incluindo Maya Hawke, Harley Quinn Smith e Rummer Willis) que referenciam a qualidade “familiar” hollywoodiana, a passagem de bastão de pais famosos para seus filhos que, em 1969, era uma das principais características da indústria: promovendo a transformação, Hollywood ainda era elitista e fechada, comandada por herdeiros como Anjelica Huston, os irmãos Peter e Jane Fonda e Terry Melcher (filho de Doris Day). Este acabou sendo essencial não só na trajetória de Manson em Hollywood como no endereço da Ocean Drive onde os seguidores do culto foram buscar por sangue em agosto de 1969.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 161 min

Gênero: Comédia, Drama

Diretor: Quentin Tarantino

Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Al Pacino

Avaliação do Filme

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