Por Luciana Ramos

A frente do Marvel Cinematic Universe, Kevin Feige ajudou a conceber o molde que delineia as narrativas modernas de super-heróis. As incertezas sobre seus destinos, a pressão adjacente aos poderes e constante ameaça de extinção são alguns exemplos dos temas recorrentes das produções, sempre embaladas em cenas de ação regadas a CGI e definição de algum personagem como alívio cômico do grupo.

Após o encerramento de um grande projeto de expansão que durou dez anos, a MCU finalmente abriu um caminho para a transformação, ziguezagueando entre o conforto (Homem-Aranha: Sem Volta para Casa) e a inovação (WandaVision). Somente em um espaço de fluidez como este que um nome como o de Chloé Zhao poderia associar-se à marca. Apesar da pouca bagagem (em termos quantitativos), a diretora já provou ser extremamente autoral e, diante da sua visão contemplativa, diferente do classicismo norte-americano.

“Eternos” mostra-se muito mais um fruto da sua visão como cineasta do que um derivado qualquer do gênero no sentido que renega o comum maniqueísmo na narrativa e opta, na estética, pela exploração da conexão dos personagens com os elementos centrais da Terra. Isso não quer dizer que o filme se desfaça dos seus elementos essenciais – são inúmeras as sequências de ação e as pitadas de humor – mas aposta-se no tratamento da história central de forma dilatada e existencialista, embora ainda extremamente didática.

Como o próprio nome indica, a trama é centrada na figura dos Eternos, seres que são enviados por Arishem (David Kaye) para proteger outros planetas dos deviantes, perigosos predadores que ameaçam diversas formas de vida. O grupo enviado à Terra ajuda os humanos na arte da sobrevivência e do aprendizado desde o começo de sua organização social, mas permanece alheio aos seus conflitos a pedido do mestre. Cinco anos após o blip, os inimigos ressurgem e apontam para o despertar de um Celestial, o que colocaria em risco a vida no planeta. Os Eternos, então, decidem unir-se para interromper o trágico processo.

Costurando passado e presente, o roteiro contextualiza as personalidades e motivações de Ajak (Salma Hayek), Sersi (Gemma Chan), Ikaris (Richard Madden), Druig (Barry Kheogan), Kingo (Kumail Nanjiani), Phastos (Bryan Tyree Henry), Duende (Lia McHugh), Thena (Angelina Jolie), Makkari (Lauren Ridloff) e Gilgamesh (Ma Dong-seok), estabelecendo diferenças de percepções e vivências deles como pontos fundamentais na construção de uma discussão sobre o conceito de humanidade. O que a define? Qual é o papel da memória nessa construção identitária? Como os humanos conseguem abarcar tanta potencialidade para o bem e para o mal? O que os Eternos puderam aprender com eles sobre as emoções?

A complexidade do debate é explorada pelo diálogo e por uma belíssima fotografia. Assim como no premiado “Nomadland”, Zhao enfatiza a beleza das paisagens naturais e usa cenas comuns, como a destruição de um ônibus, para imprimir poesia ao filme – neste caso, o pesado transporte se transforma em uma chuva de rosas. Mais surpreendente é a sua capacidade de estimular o riso, sabendo adequar a premissa absurda do alívio cômico em um cenário crível e estimulante, capaz de arrancar boas risadas.

O elenco também se mostra disposto a encarnar uma jornada mais introspectiva e aprofundada, algo essencial para conferir densidade ao filme. Nas suas mãos, a história torna-se palatável e, ao mesmo tempo, emocionante, um equilíbrio difícil de obter ao se trabalhar com elementos tão distintos. Impossível, porém, não notar o excessivo dilatamento de algumas passagens em flashback, que impactam negativamente na produção por estendê-la um pouco além do ponto desejado.

Obviamente, uma digressão desse tamanho ao molde certamente causará impacto (e ruídos) nos fãs mais aguerridos por tirá-los da zona de conforto, mas “Eternos” revela o entendimento de Feige que todo produto audiovisual, quando trabalhado à extensão, decorre inevitavelmente no cansaço e posterior abandono. Ao experimentar em outras searas (sem abandonar totalmente o que já foi construído), expande-se aos poucos o entendimento do público sobre o que define o gênero e, assim, possivelmente garante-se uma sobrevida ao mesmo.

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 2h37min

Gênero: super-heróis, ação, aventura, drama

Direção: Chloé Zhao

Elenco: Gemma Chan, Richard Madden, Angelina Jolie, Salma Hayek, Kit Harrington, Kumail Nanjiani, Lia McHugh, Brian Tyree Henry, Lauren Ridloff, Barry Kheogan, Ma Dong-seok, Harish Patel

Avaliação do Filme

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