Por Luciana Ramos

 

Quando criança, Guillermo Del Toro foi apresentado ao mundo sobrenatural e encantou-se com suas possibilidades. Sua curiosidade com os limites da realidade e consequente aproximação do realismo fantástico o conduziram a escrever narrativas simbólicas que exploram temas complexos com sensibilidade romântica.

Assim o fez em “Labirinto do Fauno”, onde dissecou a ditadura de Franco através do contato do olhar infantil com a de um monstro, que ao mesmo tempo instigava a menina a uma aventura e a repelia por simbolizar o perigo do desconhecido. Em seu novo trabalho, utiliza a construção de fábula para falar em favor dos excluídos, dos incompreendidos, dando-lhes uma “princesa sem voz” de bom coração que se apaixona por um ser aquático.

A moça e questão é Eliza Esposito (Sally Hawkins), que divide os dias entre refeições amigáveis com seu vizinho Giles (Richard Jenkins) e o trabalho em um laboratório de pesquisa governamental, onde trabalha como faxineira. A sua mudez, fruto de um ataque enquanto criança, molda a sua personalidade acanhada, que observa o mundo enquanto sorri cabisbaixa. Mesmo entre amigos, tem sua capacidade de expressão tolhida, já que eles, em muitas ocasiões, escolhem ou mudam as suas palavras.

 

 

Ao constante som das histórias de Zelda (Octavia Spencer), trabalha feliz até o dia em que um novo “ativo” chega ao trabalho, despertando a sua curiosidade. Os breves contatos que tem com a criatura anfíbia (Doug Jones), acorrentada a uma piscina, a fazem ansiar por mais, fruto de uma conexão por reconhecimento: pelas interações com a criatura, com capacidade de comunicação limitada como a dela, enxerga a completude na incompletude – ou melhor, encontra alguém que não consegue notar o que lhe falta, a fala. As interações crescem exponencialmente, movidas a músicas e ovos, transformando-se em amor. O iminente perigo de vida da criatura empurra Eliza a abandonar a passividade e tomar a decisão de tentar salvá-lo.

A improbabilidade do tema é logo superada, dada a excelente construção do roteiro, que se torna facilmente palatável. Pela movimentação da protagonista, que requer a ajuda de seus amigos, Del Toro confere poder às minorias que, especialmente na época, sofriam discriminações. No seu filme, eles são os agentes da mudança e representam o bem, contrapostos pela figura de Richard Strickland (Michael Shannon), representação simbólica do preconceito envolto pela ignorância e ar de superioridade, que anulam a profundidade de visão sobre um tema ou objeto, relegando-a a uma impressão superficial e errônea.

Essa dicotomia é muito bem trabalhada visualmente, em toda a composição do design de produção, estendendo-se ao figurino e a fotografia. O mundo frequentado pela protagonista, desde a sua casa a lanchonete que frequenta com Giles e o laboratório, possuem tons esverdeados e azuis que a alinham visualmente ao monstro, que possui escamas dessas cores. Em especial no último ambiente, as bordas arredondadas assemelham-se a um grande aquário, servindo como representação imagética do tema.

Em contraste, tons de amarelo surgem pontualmente, tanto nos corredores do trabalho quanto nos da sua casa, indicativos dos perigos que ela enfrenta por suas escolhas. O contraponto visual fica mais evidente quando é mostrada a casa de Strickland, seu habitat, completamente trabalhado nessa cor – em tom forte. A trama ainda incorpora o vermelho no figurino de Eliza a partir do momento em que ela se envolve com a criatura, simbolizando o nascimento do seu amor por ele.

 

 

A fotografia faz um excelente trabalho de explorar esses ambientes em enquadramentos contínuos, que nunca deixam de apresentar novos elementos às cenas, guiando o olhar do espectador sem nunca subestimá-lo. Em complemento ao trabalho visual, há a inserção recorrente da belíssima trilha de Alexander Desplat, que pontua as sequências principais, transitando entre melodias românticas e de suspense.

O resultado final é uma obra que explora seu tema com extrema sensibilidade, expondo a poesia inerente ao amor, seja ele entre quem for. Com seu romance pouco provável, Del Toro advoga pela aceitação das diferenças, propondo ao espectador que este adote um olhar despido de preconceitos. Se o fizer, poderá se abrir para toda a beleza simbólica inerente ao cinema autoral do diretor mexicano, que utiliza seus monstros tão queridos como instrumentos de analogia para crítica social.

 

Pôster

 

 

 Ficha Técnica

 

Ano: 2018

Duração: 123 min

Gênero: aventura, drama, fantasia

Diretor: Guillermo Del Toro

Elenco: Sally Hawkins, Octavia Spencer, Richard Jenkins, Doug Jones, Michael Shannon

 

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

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