Por Luciana Ramos

*Contém Spoilers*

“Guerra Fria”, novo filme de Pawel Palikowski, realiza um esforço inicial em denunciar a cooptação das artes pelo maquinário stalinista que, através da montagem de espetáculos musicais remetidos a cultura tradicional camponesa, serviu para inflamar o espírito ufanista dos cidadãos pertencentes ao bloco soviético. Neste contexto, são apresentados Wiktor (Tomasz Kotz) e Irena (Agata Kulesza), músico e coreógrafa contratados para encontrarem talentos capazes de simbolizar estes ideais.

Dentre uma infinidade de pessoas que tentam uma vaga, destaca-se uma jovem que compensa sua inadequação com um rosto magnético – e atrai os olhares de Wiktor. O período de duro treinamento vocal e corporal a que é submetida junto aos outros selecionados marca o início do romance entre os dois. Este, por sua vez, é demarcado pelo contraste marcante entre as personalidades deles, submetidas ao impulso romântico que ultrapassa as marcas do puro desejo.

O ímpeto por uma vida mais completa – e livre – leva-o a convencer Zuzanna (Joanna Kulig) a cruzar a fronteira alemã. A desistência dela na última hora (que carece de contextualização) marca o primeiro desencontro do casal. Ao longo de quinze anos, serão diversas as vezes em que seus caminhos cruzarão, sempre fruto do movimento deliberado de um deles, movido pelas saudades.

A cada encontro, uma nova cidade, uma nova circunstância: ele se transforma em um músico respeitado em Paris; ela, a estrela da campanha nacionalista soviética; ele tem um caso com uma poetisa, ela se casa. As inúmeras transformações são indicativos de que as vidas de ambos continuaram a andar na ausência do outro. Já a impossibilidade de ficarem afastados denota o quão superior é o sentimento que os permeia, a única constante de suas existências.

Baseando-se no tom desastroso do envolvimento de seus pais, que guia sua visão sobre o amor, o diretor constrói esta como uma história trágica e, exatamente por isso, idealista. Seus personagens, tão opostos, não compartilham dos mesmos anseios ou visões de mundo, das pequenas similaridades que funcionariam como apaziguadoras de conflitos; ao contrário, parecem perdidos nos seus anseios românticos e, por isso, suscetíveis as consequências de decisões impensadas.

Assim, o esforço da construção inicial do panorama político é esvaziado aos poucos, substituído pela preponderância de um olhar mais intimista, voltado para os sentimentos de Wiktor e Zula. Se esta decisão do diretor provoca um frescor notável, também enfraquece o potencial narrativo do filme. A Guerra Fria, minunciosamente construída no microcosmo das apresentações musicais, perde espaço na trama e, portanto, impacto. A supressão de algumas contextualizações importantes, como a saída de Irena do grupo Mazurka (e as consequências deste ato, dado o fato de a sociedade retratada não ser exatamente livre) provocam lacunas que, somadas, falham em atrelar um tom histórico crítico ao enlace romântico que move a ação narrativa.

A fotografia em preto e branco de Lukasz Zal explora esse jogo de oposições não só pelo amplo uso do contraste, como pelo equilíbrio entre a adoção de planos grandiosos, em que os personagens mostram-se pequenos em relação à paisagem (e ao panorama social em que se encontram), e a adoção de enquadramentos fechados, que abusam da capacidade dos atores de traduzirem as emoções com seus rostos. Enquanto o olhar de Tomasz Kotz é melancólico e taciturno, traduzindo visualmente a introspecção de seu personagem, Joanna Kulig transborda a tela ao oferecer imensa vulnerabilidade, dominando a atenção nas cenas em que atua, munindo Zula de extravagância e charme.

A dinâmica entre os dois é essencial para a imersão na complicada história de Wiktor e Zuzanna, que não conseguem ficar longe um do outro, mas não são incapazes de transpor o contraponto ideológico que os repele, o cerne de suas separações. Como importante pano de fundo está a música que os move – a voz dela, o som do piano dele – em um mundo onde a única constante é o amor.

 

*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Poster:

Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 89 min

Gênero: drama, romance

Diretor: Pawel Palikowski

Elenco: Joanna Kulig, Tomasz Kotz, Agata Kulesza, Borys Szyc

Trailer:

Imagens:

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