Por Luciana Ramos

 

Rebecca Hall cresceu à sombra do nome do seu pai, Peter Hall, grande diretor da Inglaterra que, entre outras coisas, fundou o prestigiado grupo de teatro Royal Shakespeare Company, de onde saíram nomes como Mark Rylance e Joseph Fiennes. Sua mãe, Maria Ewing, era uma cantora de ópera e orbitava em outra esfera cultural, mas sempre se recusava a oferecer uma narrativa concreta sobre sua criação nos Estados Unidos. Desde criança, Rebecca enxergava traços afro-americanos em suas feições, mas Maria desconversava sobre o assunto…até 2008.

Já na fase adulta e cercada pela discussão racial que impulsionou a eleição de Barack Obama, Hall decidiu ser mais assertiva e descobriu que não só seu avô era negro, como se passava por branco, legado deixado para a sua mãe, que parecia fazer o mesmo. A fim de buscar mais solidez nas suas próprias raízes, ela decidiu ler “Identidade”, romance de 1929 escrito por Nella Larsen.

Um dos nomes da chamada “Renascença do Harlem”, Larsen propôs-se a investigar a própria herança birracial em um livro que debate o encontro de duas antigas amigas de infância que transitam em espectros sociais diferentes: Irene (vivida no filme por Tessa Thompson), casada com um homem negro e persona ativa da sua comunidade e Claire (Ruth Negga), que tingiu os cabelos de loiro opaco para se passar por branca e, no caminho, conquistou um marido terrivelmente racista.

O encontro ocorre ao acaso. Irene transita em um bairro branco da cidade em um dia ensolarado e decide ir ao restaurante de um hotel para se refrescar. O longo chapéu ajuda a esconder as características da sua raça, auxiliado pelo tom claro da pele. Porém, ela é encarada por outra mulher com cabelos à la Jean Harlow, que se revela ser Claire, sua antiga amiga.

Hospedada no local, esta não tem parcimônia em dizer que vive se passando por branca, chegando a proferir alguns absurdos como a preocupação na gravidez com a possível tonalidade da cor da filha. A conversa é subitamente interrompida por seu marido, John Bellew (Alexander Skarsgaard), que entra no cômodo lhe chamando pejorativamente com um apelido racista e, quando contestado, aproveita para destilar seu ódio de raça – guiando-se pelo princípio de que é tudo uma brincadeira, visto que sua mulher “é branca”.

Irene jura nunca mais vê-la, mas é vencida pela insistência de Claire, que anseia por voltar a conviver com sua comunidade em segredo. A partir de então, o jogo entre as duas oscila entre uma convivência agradável e os ciúmes de Irene, que vê suas pequenas fortalezas serem abaladas pela amiga sem o menor pudor. Todos parecem gostar mais da “princesa loira”, como é designada pelo amigo escritor Hugh (Bill Camp), levando-a pesar se não seria melhor para si desmarcar Claire.

Ao contrário do livro, totalmente passado na cabeça de Irene, o filme escrito e dirigido por Hall não consegue deixar clara a crise existencial da protagonista. Ela parece mais movida pela mesquinhez individual do que pelos questionamentos sobre o conceito de raça. Através da sua experiência, o romance explora em profundidade o impacto de uma figura como Claire na sociedade, a aceitabilidade ou não de suas ações e, em última instância, as consequências nefastas para a toda comunidade negra no caso de ser descoberta.

Ao apostar na sutileza, Hall constrói uma atmosfera crítica, mas se recusa a trabalhar assertivamente qualquer questão. Assim, as ponderações que aparecem espalhadas nos diálogos são deixadas a serviço da reflexão do espectador. No processo, perde-se a pungência inerente ao tema e, dessa forma, a possibilidade de transformar a narrativa em matéria transcendente.

A excessiva delicadeza, por assim dizer, não anula os esforços da diretora, em especial seu trabalho estético. Filmado em preto e branco, “Identidade” explora visualmente seu tema como poucos debuts diretoriais. A opção de filmar sequências com uma Lomography permite granulosidade e desfoque que exaltam a complexidade da questão racial, não definida em linhas duras ou imutáveis. Já a vivência das personagens é trabalhada através da iluminação, sendo o habitat de Claire filmado com abundância de flares e luzes estouradas (mais brancas) e a casa de Irene com mais sombras e escuridão. O longa muito se beneficia do talento das duas atrizes principais, Tessa Thompson e Ruth Negga, que imprimem extrema sensibilidade às suas personagens e, através dos olhares, desnudam suas máscaras sociais.

Desviando da pungência do livro, “Identidade” falha em propiciar a esperada catarse ao final, mas consegue permanecer interessante pela complexidade de sua estética, revelando um faro aguçado de Rebecca Hall para a cadeira de diretora. Ainda que não seja assertivo, ele convida o espectador a refletir sobre a miríade de teias que interconectam o tecido social à construção da raça.  

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 1h 38 min

Gênero: drama

Direção: Rebecca Hall

Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, Alexander Skarsgaard, Bill Camp, André Holland

Avaliação do Filme

Veja Também:

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS

O Menino e a Garça

Por Luciana Ramos   Aos 83 anos, Hayao Miyazaki retorna da aposentadoria com um dos seus filmes mais pessoais. Resvalando...

LEIA MAIS