Por Luciana Ramos

 

Alguns filmes são as representações imagéticas do conforto. Diante de uma tela gigante em uma sala escura, o espectador abandona um pouco a realidade para embarcar na fantasia melodiosa – e, muitas vezes, previsível – do cinema. Uma obra apreciada para sentir-se bem. Já outras exploram o potencial oposto da arte: o de agente perturbador, inquisidor, aquele que aponta o dedo para o espectador e o faz refletir sobre seus atos individuais ou, como é o caso de “Mãe!”, leva à questão a um plano mais abrangente e põe em pauta a sociedade como um todo.

 

Darren Aronofsky, conhecido pelo seu perfil provocador, leva seu arsenal técnico e artístico ao extremo nessa trama que vai ganhando claridade conforme desenrolada, até que se torna possível compreender o seu todo como uma alegoria bíblica. Nesta, descreve os comportamentos humanos corrompidos e, por vezes, irracionais, que desembocam em um círculo vicioso difícil de romper.

 

 

 

A câmera acompanha a visão da personagem de Jennifer Lawrence, o que leva ao público se posicionar pelos seus olhos. Esse movimento é acentuado pela constante movimentação ao seu redor, filtrando a realidade sob seu ponto de vista, sempre em um caráter claustrofóbico. O decorrer dos acontecimentos, no entanto, força-o, de maneira brutal, a identificar-se com os outros – os intrusos e seus modos condenáveis – o que causa um imenso desconforto, somente aumentado exponencialmente a cada cena.

 

A protagonista, no entanto, não sai do seu papel de passividade, algo muito bem fundamentado em uma fala final de Javier Bardem. Seu manto de pureza é reafirmado pelo uso de cores claras, contrastantes a todos os outros personagens. Suas visões revelam os simbolismos escondidos na trama e, quando captados, ajudam a tecer uma linha narrativa direta que justifica todos os acontecimentos.

 

Com isso, o espectador é convidado a participar dos acontecimentos ir, para, ao decifrar a mensagem criptografada, exercer a reflexão convidativa sobre as vicissitudes da humanidade, seus modos de organização, suplementações de poder e outros problemas. Falando assim, “Mãe!” soa difícil, muito afastado das questões atuais. Porém, ainda que sim, exija dedicação atenta para seu desvendamento, é extremamente preciso nas suas considerações e, por isso, revela-se não só pertinente, como uma das obras mais relevantes dos últimos anos.

 

 

 

Falar de “Mãe!” exige também certo sigilo, mantido neste texto que muito fala, mas pouco revela. Ao trabalhar com o choque como recurso – algo já usado por outros cineastas em tramas igualmente alegóricas, como Lars Von Trier em “O Anticristo” – Aronofsky joga as regras da imprevisibilidade e consequente surpresa como elementos essenciais de apreciação. Assim, qualquer elemento descrito em demasia estragaria parte da experiência.

 

Tudo isso é pontuado pelo ar de pessimismo que envolve toda a obra. Os personagens e situações são mostrados sob uma ótica negativa, perversa por ser crua. Conforme o final se aproxima, a narrativa vai se tornando cíclica, mas a esperança de um novo começo não é capaz de apagar da mente do espectador a brutalidade tão bem detalhada ao longo de duas horas de projeção. Este sai da sala de cinema estatelado, confuso com tantos estímulos e, assim, convidado a rever em sua mente momentos-chave para atingir a total compreensão do filme. Quando este momento chega, é então revelada a genialidade de “Mãe!”, sua coragem, sua primazia estética. Assim, pode-se compreender que este é um dos melhores – e mais estimulantes – filmes dos últimos tempos, sinal de autoralidade muito bem-vindo em épocas de reproduções genéricas hollywoodianas.

 

Pôster

 

 

Ficha Técnica

Ano: 2017

Duração: 121 min

Nacionalidade: EUA

Gênero: drama, horror, mistério

Diretor: Darren Aronofsky

Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer, Ed Harris

 

 

Trailer:

 

 

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

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