Por Luciana Ramos

Fruto de mais de trinta anos de concepção do roteirista e diretor Paulo Morelli, “Malasartes e o Duelo com a Morte” reverencia um personagem típico ibérico-brasileiro, que já apareceu em diversas formas na literatura e no cinema: o caipira cínico que dribla as desvantagens da vida com pequenas enganações. Sua fonte de sobrevivência é a esperteza e logo ao início do filme essa questão é trabalhada: diante de uma dívida imensa com Próspero (Milhem Cortaz) e um “causo” sobre um pintarroxo envolvendo o inocente Zé Candinho (Augusto Madeira), Pedro Malasartes (Jesuíta Barbosa) mostra-se apto a superar os obstáculos fugindo e fazendo os outros de bobos. A coisa que mais preza na sua vida é a liberdade e nem o amor por Áurea (Ísis Valverde) é capaz de convencê-lo a se amarrar.

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Porém, no aniversário de 21 anos, sofre uma verdadeira provação, ao receber um dom do seu “padrinho”, a Morte (Júlio Andrade). Entediada pelos séculos em que foi responsável pelo fim da existência de todos os seres humanos, ela trama para que Malasartes assuma o seu posto, para grande desespero daqueles que o querem para si: a Parca Cortadeira (Vera Holtz) e seu assistente, Esculápio (Leandro Hassum). A trama segue um molde simplista, dividindo-se entre os dois mundos: o campo e o além, representado por um mar de velas, cada uma simbolizando a vida de alguém . O devido contraste é enaltecido pela fotografia, que trabalha muito bem a luz natural e a sombra artificialmente elaborada, por vezes arroxeada, da morte.

 

Ainda que carismático e engraçado pelo perfil de seu protagonista, “Malasartes e o Duelo com a Morte” falha em lhe conceder a profundidade preterida: os exemplos de sua esperteza são suprimidos pelo embate do título e, diante de comparação com outros personagens fílmicos como João Grilo, de “Auto da Compadecida” e a própria personificação de Mazzaropi do personagem, a versão atual sai em desvantagem. O trabalho narrativo ainda sofre com o uso de diálogos excessivamente explanatórios, que soam redundantes ao que é mostrado visualmente. Ademais, sofre com o ritmo, já que o segundo ato se mostra bem mais interessante do que os demais por explorar as potencialidades de um caminho mais cômico. Com o abandono desse tratamento em prol de um desfecho atabalhoado, o roteiro não consegue atingir a grandeza bem-humorada a que se propõe.

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O longa, no entanto, redime-se pela qualidade técnica, que se torna o seu grande diferencial. A criatividade é facilmente percebida na concepção de ideias simples para o Além, seja pelo visual bonito das velas, seja pela homenagem às rendeiras nordestinas na figura das Bruxas que tecem o destino dos homens. À eximia direção de arte de Tulé Peak, soma-se o uso abundante de efeitos especiais, o mais expressivo no cinema brasileiro até o momento. Os movimentos de levitação, pulos, desaparecimentos mágicos e outros do tipo concedem o ar lúdico a que a obra se propõe e são criteriosamente acompanhados por movimentações de câmeras que fogem do eixo comum e criam o devido encantamento visual. No entanto, o filme não se sustenta no deslumbramento, mas na força de seu elenco, em especial do talentoso Jesuíta Barbosa. Seu carisma e a naturalidade com que imprime as reações de seu personagem tornam Malasartes adorável e, consequentemente, alvo de torcida.

Transitando entre a qualidade técnica e um roteiro que, embora agrade, possui problemas de estruturação, “Malasartes e o Duelo com a Morte” mostra-se uma produção audiovisual acima da média, um reflexo de novas abordagens temáticas e estéticas que permeiam o cinema brasileiro atual e tem conferido bons resultados, mais distanciados das obras massificadas que antes dominavam as salas de cinema. Não obstante, sua aposta na leveza o torna apropriado para ser desfrutado de toda a família.

 

 

Pôster:

 

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 Ficha Técnica

Ano: 2017

Duração: 110 min

Nacionalidade: Brasil

Gênero: comédia

Elenco: Jesuíta Barbosa, Ísis Valverde, Milhem Cortaz, Júlio Andrade, Vera Holtz

Diretor: Paulo Morelli

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

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